A pergunta do título acima foi o dilema da social-democracia, notadamente a alemã, durante anos, mas não é mais. Nas eleições de domingo (23) ocorreu, uma vez mais, o resultado da escolha dos social-democratas alemães pela segunda opção. O Partido Social-Democrata Alemão (SPD), de Olaf Scholz, sofreu uma acachapante derrota, obtendo 16,4% dos votos contra 26% nas eleições de 2021, perdendo cerca de 4,5 milhões de eleitores. Vitória da União Democrata- Cristã (CDU), com 28,6%, e forte crescimento da AfD, de extrema-direita, com 20,8%.
Promover a transformação social ou gerir os negócios da burguesia era o dilema que dividia opiniões na social-democracia europeia, especialmente a alemã, na virada do século XIX para o XX. O acirramento da luta de classes trouxe a percepção de que a construção de uma sociedade socialista só poderia ocorrer com algum grau de ruptura institucional, pois, pela via eleitoral, seria fatalmente esmagada pela reação burguesa. Daí prevaleceu a ala reformista do SPD, abdicando de qualquer perspectiva socialista.
A submissão à burguesia alemã na 1ª Guerra Mundial e a reação contrária à Revolução Russa de 1917 foram a pá de cal em qualquer traço revolucionário do SPD. Em novembro de 1918, ao final da 1ª Guerra, com o país à beira de uma revolução social, Friedrich Ebert, líder do SPD, foi chamado a assumir o governo para, pasmem, conter o poderoso proletariado alemão, governando até 1925 em coalizão com os dois principais partidos burgueses (Zentrum e DDP).
O que veio na sequência é de amplo conhecimento: a recusa a uma ação conjunta do SPD e do Partido Comunista Alemão (KDP), submisso a Stálin, propiciou a rápida ascensão do Partido Nazista e a posse de Hitler em 1933, mesmo minoritário, com 33% dos votos, contra 37,3% do SDP e KPD.
Após a derrota nazista em 1945, a social-democracia alemã, defendendo um programa reformista, saltou de 29,2% dos votos em 1949 para 42,7% em 1969, desbancando a CDU (que governava desde 1949), elegendo Willy Brandt chanceler. Reformista, Brandt foi substituído em 1974 por Helmut Schmidt, que se manteve no governo até 1982, mas abdicando do programa reformista e adotando o receituário liberal praticado por Reagan e Tatcher.
Em 1983 o SPD foi derrotado, ocorrendo o retorno do CDU com Helmut Kohl até 1998. Desgastado por 15 anos de governo, Kohl cai e o SPD retorna com Gerhard Schroder, só que ainda mais liberal. Schroder flexibiliza as leis trabalhistas e fez o que nem a CDU fizera: começou a desmontar o Sistema de Bem-estar Social Alemão.
A consequência foi uma pesada derrota em 2005, seguindo-se sucessivos governos de Ângela Merkel, da CDU. Sem maioria para formar o governo, Merkel trouxe o SPD para sua coalizão, o que desfigurou ainda mais a imagem do partido. E seu eleitorado despencou de 34,2% em 2005 para 20,5% em 2017. Em 2021, o CDU de Merkel sofreu fragorosa derrota, possibilitando ao SPD formar o governo com o Partido Verde, a Aliança 90 e o Die Linke, de centro-esquerda.
Mas, desprezando o novo crédito dado pela classe trabalhadora alemã, o chanceler Olaf Scholz, apenas dois meses após assumir, aderiu ao boicote ao gás russo imposto por Biden, o que levou a uma enorme elevação dos preços de energia no país. O resultado foi uma inflação de 7,9% em 2022 e 5,9% em 2023, muito acima dos padrões alemães.
O Banco Central, para combater a inflação, lá como cá, elevou a taxa de juros, provocando pequeno crescimento de 1,8% do PIB em 2022 e retrações de -0,3% em 2023 e -0,2% em 2024, sacrificando a poderosa indústria alemã e seu poderio exportador. A crise do SPD é estrutural. As mudanças no mercado de trabalho (uberização, terceirização etc) fizeram minguar sua tradicional base social, os trabalhadores formais sindicalizados.
A Alemanha tem inúmeros problemas sociais: são mais de meio milhão sem moradia, vivendo em abrigos ou nas ruas; 8 milhões de imigrantes no limiar da pobreza e os salários corroídos pela inflação não foram repostos. É claro que o governo do SPD teve sua ação dificultada pelos partidos centristas de sua coalizão, e é claro que é acossado pelo discurso de ódio e mentiras plantadas pela extrema-direita.
Mas o determinante é que se acomodou nos limites impostos pela classe dominante alemã. Ao se tornar partido da ordem burguesa, a social-democracia perdeu para a extrema-direita a bandeira “antissistema”. E abdicando de um programa mínimo de reformas, deixou de tocar o coração da massa trabalhadora, perdendo apoio até mesmo entre os mais pobres.
Vale a reflexão para os alemães: para gerir os negócios da burguesia, vai se desfigurar. Vale a pena? Não seria melhor deixar isso para os partidos burgueses e aprofundar a oposição ao “sistema”, acumulando forças para poder implementar um programa de profundas reformas sociais?
Saiba +
Breve histórico da responsabilidade do SPD e do KPD na ascensão do Partido Nazista
Nas eleições alemãs de maio de 1924, os dois partidos de esquerda obtiveram 33,1% dos votos (20,5% do SPD e 12,6% do KPD). A extrema-direita, representada pelo NSFP em aliança com o Partido Nazista, sob a liderança do marechal Ludendorff, obtivera apenas 6,5% dos votos. Os vencedores foram os partidos tradicionais da burguesia (Zentrum, DVP, BVP e DDP), com 60%, cuja maioria foi confirmada nas eleições de dezembro de 1924, formando governos de centro-direita até 1928.
Nas eleições de maio de 1928 os dois partidos de esquerda obtiveram mais de 40% dos votos (quase 30% do SPD e 10,6% do KPD). Os partidos tradicionais da burguesia perderam base eleitoral e o Partido Nazista obtivera pífios 2,8%. Mas a política conciliadora do SPD e a política sectária do KPD, firmemente controlado por Stálin (chamavam os social-democratas de social-fascistas), impossibilitou a unidade para formar um governo de esquerda. O SPD ocupou a chancelaria de junho/28 a março/30, com Hermann Muller, em coalizão com partidos burgueses.
Nas eleições de setembro de 1930 o SPD sofreu grande derrota, o que se repetiu no pleito de julho de 1932. Embora a votação do KPD tenha crescido, no conjunto os dois partidos caíram para 36% do eleitorado, assistindo a derrocada dos partidos tradicionais da burguesia e a impressionante ascensão do Partido Nazista, com 37,3% dos votos.
O rápido crescimento dos nazistas acendeu a luz amarela no proletariado alemão, e nas eleições de novembro de 1932, SPD e KPD recuperaram parte do eleitorado, obtendo 37,3% dos votos, e o Partido Nazista perdera 2 milhões, caindo para 33,1%. Mas o sectarismo prevaleceu e, embora minoritário, Hitler conseguiu tornar-se chanceler em janeiro de 1933.
E a história a partir daí todos sabem…