A Justiça brasileira até tarda, mas não falha, diz o ditado. Onze dias depois de comemorar os 40 anos da posse de José Sarney como primeiro presidente civil após o golpe de março de 1964, o Brasil começou a viver, na quarta-feira (26), uma nova etapa do período democrático inaugurado naquele 15 de março de 1985: a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, tornar réus oito acusados, entre eles, o capitão Jair Bolsonaro, pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, movimento que culminou no 8 de janeiro de 2023.
É a primeira vez que um ex-presidente eleito é colocado no banco dos réus por crimes contra os princípios democráticos estabelecidos na Constituição de 1988 e previstos nos Artigos 359-L (golpe de Estado) e 359-M (abolição do Estado Democrático de Direito) do Código Penal. Além de Bolsonaro, tornaram-se réus outros cinco militares de alta patente: o general e ex-ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto; o general e ex-ministro do GSI, Augusto Heleno; o general e ex-ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira; o almirante e ex-comandante da Marinha, Almir Garnier; e o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid; além de dois civis (o ex-diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, e o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres).
“Não há dúvidas de que a PGR apontou elementos mais do que suficientes, razoáveis, de materialidade e autoria para o recebimento da denúncia contra Jair Messias Bolsonaro”, disse o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, referindo-se à acusação apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Moraes votou para que Bolsonaro também responda, pelos crimes de organização criminosa armada, dano qualificado pelo emprego de violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. As penas podem superar 30 anos de cadeia.
NÚCLEO CRUCIAL – A Primeira Turma do STF, que aceitou a denúncia da PGR, baseada em investigações da Polícia Federal, é formada pelos ministros Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia Cristiano Zanin (presidente). Durante dois dias, os magistrados julgaram o chamado “núcleo crucial” do golpe, que tem, ainda, outros 26 acusados de integrar uma organização criminosa para praticar atos contra a democracia, de 2021 ao início de 2023.
Dino buscou garantir que as defesas terão oportunidade de construir suas próprias narrativas, que serão levadas em consideração no momento adequado. “Justiça é diferente de justiçamento. Temos que aferir a conduta, uma a uma, independentemente do julgamento moral que tenhamos sobre a pessoa”. Fux destacou que o voto do relator detalhou ponto a ponto as condutas e crimes imputados a Bolsonaro e outros sete aliados. Ressalvou, contudo, que durante o processamento da ação penal deverá apresentar divergências em relação ao cálculo das penas.
FALSA NARRATIVA – Cármen Lúcia ressaltou a gravidade dos crimes. “Um golpe não se faz em um dia”. E frisou que não há como negar a violência do episódio. “É preciso desenrolar do dia 8 para trás, para chegarmos a esta máquina que tentou desmontar a democracia”. Último a votar, Cristiano Zanin destacou que não é necessário que alguém seja o executor de um crime para que o tenha praticado junto com outras pessoas. “Existem inúmeros documentos que mostram, em tese, a participação dos denunciados em atos que podem ter culminado no dia 8 de janeiro”.
Em entrevista coletiva após a sessão do Supremo, Bolsonaro afirmou, sem provas, que o processo tem motivação política e falou em “perseguição seletiva”. “O tribunal tenta evitar que eu seja julgado em 2026, pois querem impedir que eu chegue livre às eleições porque sabem que, numa disputa justa, não há candidato capaz de me vencer. Se realmente acreditassem na democracia que dizem defender, me enfrentariam no voto, não no tapetão”, escreveu nas redes sociais.