Júlio Miragaya (*)
Em que situação o governo Zelenski colocou a Ucrânia? A de uma nação soberana ou de bucha de canhão da OTAN? Ora, não há que se falar de soberania quando os governantes aceitam colocar o país como marionete dos EUA para provocar a Rússia.
Embora o conflito envolva questões étnicas, religiosas e ideológicas, se trata, sobretudo, de interesses econômico-financeiros. De um lado, Biden, representante dos trustes norte-americanos, apoiado pelos liberais e social-democratas europeus, de olho nos recursos naturais da Rússia (que também seduzem os chineses).
De outro, Putin, chefe dos oligarcas russos – ex-burocratas stalinistas que se apropriaram das empresas privatizadas após a dissolução da URSS e enriqueceram com a destruição das conquistas da Revolução de 1917 – que não quer entregar o petróleo e o gás russos aos trustes norte-americanos.
E o “comediante/palhaço” colocou a Ucrânia na linha de fogo entre EUA e Rússia. À título de revisão histórica, vale frisar que o povo ucraniano começou a se distinguir dos russos e bielorrussos apenas no século XVII, com a formação dos “estados” cossacos na República das Duas Nações (Polaco-Lituana), o Hetmanato Cossaco e o Zaporozhian Cossaco, no centro da atual Ucrânia.
Ainda no século XVII, os dois “Estados” passaram à influência do Czarado da Rússia. A partir daí, fortes correntes migratórias ucranianas dirigiram-se para duas regiões russas: a subpovoada de Sloboda (atual oblasts de Sumy, Kharkiv e Luhansk), tomada dos lituanos ainda no século XVII, e para os “campos selvagens” da chamada “Nova Rússia” (bacias do Mar Negro, Mar de Azov e baixo Dnieper), tomada dos turcos no século XVIII.
A Ucrânia só viria a se constituir como nação independente após a Revolução Russa de Outubro de 1917. Lênin, que chamava o Império Czarista de “prisão dos povos”, em sua “Carta aos operários e camponeses da Ucrânia”, em 1919, afirmou:
“A independência da Ucrânia foi reconhecida pelo Partido Bolchevique e pela República Socialista Soviética da Rússia. Somente os operários e camponeses da Ucrânia, em seu Congresso de Sovietes, podem decidir a questão de fundir a Ucrânia com a Rússia ou ficar como uma república independente”. A Ucrânia que ingressou na URSS em 1922.
Sobre a delimitação da fronteira, Lênin afirmou: “Sejam quais forem as fronteiras da Ucrânia e Rússia, sejam quais forem as formas de suas relações como Estados, não são coisas tão importantes. Sobre isto se podem e se devem fazer concessões. A causa da vitória sobre o capitalismo não sucumbirá por isto.”
Lenin, por priorizar a revolução proletária, defendia que a delimitação das fronteiras entre Rússia e Ucrânia não fosse empecilho. Assim, as duas regiões historicamente russas, Sloboda e Nova Rússia, foram incorporadas ao território ucraniano em 1922 (a Galícia em 1945 e a Crimeia, em 1954).
Foi a este processo que Putin, não desprovido de alguma razão, se referiu como “parte dos territórios históricos da Rússia ‘entregues’ à nascente nação ucraniana por Lenin e seus camaradas bolcheviques”.
Não por acaso, segundo o Censo Russo de 1897, os russos étnicos eram 68,2% em Luhansk; 63,1% em Kharkiv; 63,2% em Mariupol; 57,8% em Kerch; 49,1% em Odessa; e 66,3% em Mykolaiv, todas grandes cidades das regiões russas incorporadas à Ucrânia em 1922.
Após a criação da URSS, a migração ucraniana para essas regiões se intensificou. Mesmo passados 70 anos, em 1991, 69,2% da população da Crimeia ainda era de russos étnicos, assim como 46,5% da região do Donbass (províncias separatistas de Donetsk e Luhansk).
Ocorre que, após a independência da Ucrânia, em 1991, se iniciaram as perseguições e 1,09 milhão de russos étnicos deixaram a Criméia e o Donbass até 2001.
Em síntese, não foi despropositada a secessão da Crimeia e tampouco o é a pretendida autonomia do Donbass.
Hipocrisia sem limites
Toda e qualquer vida tem a mesma importância. Mas não é o que a grande mídia no Brasil e no mundo revela. Não por razões humanitárias, mas por interesses políticos, dá ampla cobertura às centenas de crianças mortas na Ucrânia, mas não sai uma linha sobre as 170 mil crianças mortas (por bombas, doenças e fome) nos últimos 8 anos na Guerra do Iêmen, pelo bombardeio do país pela Arábia Saudita, ditadura sanguinária sustentada e armada pelos EUA. São pequeninos corpos de meninas e meninos que a mídia orquestrada insiste em não ver; o odor dos desnutridos cadáveres que não sente e o choro desesperado de mães e pais que não escuta. Até quando?
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia