Ricardo Nogueira Viana (*)
Em cartaz, Medida Provisória, filme dirigido pelo artista e ativista Lázaro Ramos. Com um elenco de maioria negra, a obra retrata o exílio de afrodescendentes ao continente africano. Inicialmente, com um pretexto firmado em uma possível reparação histórica, o movimento foi espontâneo. Ou seja, aqueles que se voluntariassem teriam a sua ida facilitada e podiam até escolher o destino.
Após, a ação separatista ganhou aprovação do parlamento, virou lei, e o movimento passou a ser cogente, ou seja, negros foram caçados, encarcerados e deportados compulsoriamente. Como protagonistas, Antônio e Capitu, interpretados por Alfred Enoch e Taís Araújo. Negros que se tangenciaram ao destino. O primeiro, advogado, e a segunda, médica–cirurgiã.
Quanto maior a consciência, maior a resistência. Similar aos tempos da chibata, quem conseguiu se esquivar dos anseios da elite supremacista, abrigou-se em afrobanks. Uma espécie de quilombo mais atual, onde cabeças pensantes, apesar da cólera e em conjunto, tentavam persuadir e sobreviver diante do movimento de segregação.
De forma velada, não se falou em negros ou afrodescendentes, mas em melaninados, fato que fez com que a principal delatora do grupo, Dona Izildinha, vivida por Renata Sorrah, uma nítida mulata, escapasse da ira dos senhorios.
Ir ao cinema, dividir o espaço com outros negros, brancos, lúcidos e insanos e daí advém os comentários: “Que loucura, somos todos brasileiros”! Realmente somos, mas com um passado e um presente bem diferentes e um futuro sob condição, ou seja, incerto e não sabido.
Realmente, é um delírio falar em expatriar os melaninados. Não porque somos queridos, amados e valorizados, tampouco porque vivemos em uma democracia racial aventada por Gilberto Freire e, longe de pensar em recomposição das atrocidades assimiladas com a escravidão, mas sim, porque somos necessários.
Somos 56% da população. Isso: maioria. Negros e pardos abocanham mais da metade de um gráfico em pizzas. Entretanto, ocupam a base da pirâmide da nossa sociedade estática, estamental e rígida. Manter o negro subserviente traz alicerce à estrutura, desvalorizando-o, desprezando e estigmatizando.
Como corolário, com a saída desse grupo étnico, quem iria habitar cadeias, dar pujança ao mercado informal, limpar residências, carros, vender mercadorias em feiras e praias em troca de sua sobrevivência ou, na maior sorte, de um salário mínimo?
É esse o racismo estrutural que nos oprime, desvaloriza, tira oportunidades e que nos faz necessários nessa Casa Grande chamada Brasil. Contrastando o termo – Medida Provisória – com os tempos atuais, extrai-se os dois fundamentos desse ano normativo. Relevância e Urgência.
Quanto ao primeiro, é forçoso reconhecer a contribuição dos afrodescendentes na formação do brasileiro. Povo que durante mais de cinco séculos foi, e ainda continua, subjugado e discriminado por uma elite que até hoje ocupa os espaços de poder.
Em outro viés, é urgente que 134 anos pós-escravidão, diante de uma abolição desprovida de políticas públicas que pudessem amparar o negro liberto, o Estado brasileiro tenha o dever de promover políticas públicas: educação, saúde, saneamento básico, cotas, bolsas de estudo, que consigam eliminar balizas que impeçam o negro-maioria de alçar uma ascensão social.
No momento atual, cotejar afrodescentes e brancos, é como comparar a seleção brasileira de futebol com um time de várzea. Este, sem técnico, tática, tampouco uniforme, mas apenas uma vontade hercúlea de ganhar. De vez em quando, o último costuma marcar gols, assim como fizeram Capitu, Antônio e todo seleto elenco do filme, que tanto nos representa.
Sedimentar caminhos aos afrodescendetes é não só uma reparação, mesmo que tardia, mas um dever e obrigação do Estado Brasil, o qual nos importou compulsoriamente, escravizou, castigou, matou e nos amordaçou em detrimento dos seus designíos econômicos.
Caso um dia alcancemos o tão almejado desagravo, formaríamos a maioria nos três poderes da República e, no Parlamento, escreveríamos um novo enredo, uma verdadeira Constituição Cidadã, redirecionando os capítulos da História Brasileira.
(*) Delegado-Chefe da 6ª DP, Professor de Educação Física