Aldemario Araujo Castro (*)
No julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 132, recebida como Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a temática da união homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico.
O debate produziu um acórdão com mais de 270 páginas. Os longos e profundos votos abordaram as principais questões, desafios e dificuldades que conformam a compreensão e aplicação do direito na atualidade. Entre outros, foram tratados os seguintes pontos:
a) o reconhecimento da incidência direta de um amplo conjunto de valores, princípios e objetivos constitucionais (proibição de discriminação, proibição do preconceito, pluralismo, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana, igualdade, promoção do bem de todos, busca da felicidade, proteção da intimidade, proteção da privacidade, fundamentos da cidadania, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, prevalência dos direitos humanos e liberdade de autodesenvolvimento da personalidade);
b) o silêncio normativo da Constituição e seu significado;
c) a interpretação não-reducionista (ou não-literal);
d) a imediata autoaplicabilidade das normas constitucionais de proteção dos direitos humanos;
e) a consideração de novos princípios de interpretação constitucional;
f) a crítica à subsunção lógica alimentada pelas construções conceituais;
g) a eficácia e interpretação jurídicas que consideram os fatos concretos da vida;
h) os limites objetivos do direito posto à criatividade dos juízes no processo de interpretação da lei;
i) a leitura sistemática da Constituição e a necessidade de concretizar certos princípios permite deduzir institutos, direitos e efeitos jurídicos e tomar as prescrições do enunciado normativo como exemplificativas (não taxativas);
j) a superação do dogma do legislador negativo e a afirmação da viabilidade do Judiciário assumir o papel de legislador positivo, notadamente para proteger minorias e permitir o exercício de direitos fundamentais;
k) a progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva ou, em palavras distintas, o comportamento afirmativo do Poder Judiciário que resulta numa positiva criação jurisprudencial do direito;
l) o que seria ativismo judicial, a confusão com o cumprimento da própria essência da jurisdição constitucional e a moderação da sua prática (identificados os seus limites);
m) as múltiplas possibilidades de eficácia jurídica dos princípios, com destaques para a utilização como vetor hermenêutico interpretativo e para a eficácia positiva (quando o núcleo essencial de sentido deles é violado) e
n) o postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade como derivação do princípio da dignidade da pessoa humana.
A adoção de uma lei proibindo expressamente o casamento homoafetivo, como pretende parte do Parlamento, não modificará o quadro revelado pelo Supremo. Com efeito, o resguardo jurídico de situações dessa natureza decorre da aplicação de valores e princípios constitucionais não afetados pela legislação infraconstitucional.
Não houve atuação do Judiciário diante de lacuna deixada pelo Legislativo. Ocorreu, eis o cerne da questão, aplicação da normatividade superior de natureza constitucional. Nesse sentido, pode ser sublinhado o seguinte trecho da ementa resultante do julgamento da ADIn nº 2797:
“3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior.
4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo – guarda da Constituição – , às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames”.
Importa destacar que a verdadeira razão para a atuação mais intensa do Poder Judiciário nos últimos tempos decorre de uma profunda mudança do paradigma de compreensão do funcionamento da ordem jurídica. No passado, até a primeira metade do século XX, quando dominantes os constitucionalismos liberal e social, admitia-se uma supremacia meramente formal da Constituição. Assim, os casos e problemas da vida em sociedade eram resolvidos pela aplicação direta das leis infraconstitucionais.
As Constituições, seus valores e princípios fundantes, não experimentavam aplicação direta e funcionavam como meros vetores ou diretrizes a serem incorporados pelo Legislador na construção das regras legais. Esse panorama sofreu radical transformação a partir da segunda metade do século XX. As Constituições ganharam uma supremacia material ou axiológica antes inexistente.
A principal consequência prática dessa transformação revolucionária no campo jurídico consiste justamente na possibilidade, e necessidade, de aplicação direta da Constituição, notadamente seus valores e princípios, independentemente de intermediação legislativa (de uma regra específica posta na legislação infraconstitucional).
O chamado “ativismo judicial”, compreendido no sentido da aplicação direta dos valores e princípios constitucionais pelo Judiciário sem a imprescindível intermediação do Legislativo, é um fenômeno necessário e essencialmente positivo, afastados os desvios e os excessos. São concretizados, por essa via, direitos fundamentais importantíssimos realizadores da dignidade da pessoa humana.
“O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, conforme define a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Trata-se de construção internacionalmente consagrada, inclusive como a base mais relevante do Estado Democrático de Direito no Brasil (art. 1o, caput e inciso III, da Constituição brasileira de 1988).
Tentar proibir, mesmo por lei, o casamento homoafetivo atenta flagrantemente contra a dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma indevida intromissão na vida privada sem nenhuma razão de interesse público legitimamente justificadora. É a proibição pela proibição para atender caprichos medievais e falsos moralismos.
Ademais, seria uma invasão absurda na realização do projeto de felicidade de inúmeras pessoas. E, não custa frisar, projetos de felicidade fundados na multiplicação do afeto e do amor no convívio humano, atualmente tão carente desses sentimentos.
Sobre o tema são desnecessárias e impertinentes considerações de natureza religiosa. A razão é simples. São completamente descabidas, em um Estado laico, as tentativas de consagrar como normas jurídicas de comportamento certos juízos ou preferências definidos em textos religiosos, em especial aqueles resultantes de interpretações distorcidas ou descontextualizadas dos mesmos.
(*) Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional