Júlio Miragaya (*)
Eleito novo presidente do Brasil na mais disputada eleição de nossa história, Lula já começou a sofrer a pressão para que faça um governo para todos os 215 milhões de brasileiros. Por trás disso, estão os vários segmentos da burguesia, do tal “Mercado”, que pressiona para ver seus interesses e privilégios preservados. Claro que o discurso de Lula foi de que vai governar para todos. E não poderia ser diferente. Mas isto não significa que o governante não estabeleça prioridades, definindo os setores da sociedade com quem mais se identifica, a quem “deve” sua eleição ou, no caso de Lula, com quem assumiu compromissos de classe.
Bolsonaro deveu sua eleição em 2018 aos distintos extratos da burguesia brasileira – financeira, industrial, comercial e agrária – secundada pela classe média alta (donos de empresas e propriedades agrícolas de médio porte, profissionais liberais, servidores do alto escalão etc) e à cúpula das forças militares/policiais e das igrejas evangélicas. Trata-se de uma massa de eleitores com grande poder econômico e político. E foi para esses que ele governou.
Os resultados eleitorais deixaram muito claro a quem Lula deve sua eleição. Primeiramente, à classe trabalhadora mais pobre, famílias com rendimento médio mensal de até 3 salários-mínimos e majoritariamente, com o ensino fundamental. Deve também ao voto maciço de segmentos discriminados e atacados pelo bolsonarismo, como as mulheres e os negros. No plano regional, deve à votação consagradora obtida no Nordeste e parte da região Norte, mas venceu também em Minas Gerais e regiões importantes de estados onde perdeu, como as regiões metropolitana de São Paulo, Porto Alegre e a metade sul gaúcha.
Sabemos que 60% dos brasileiros residem em domicílios com rendimento médio de até 3 salários-mínimos. Se Lula teve 2/3 deste eleitorado, Bolsonaro teve 1/3. Ou seja, 40% de seus eleitores são pessoas deste extrato de renda, que não têm afinidade ideológica com o bolsonarismo, mas votaram em Bolsonaro iludidas pelo “pacote de bondades” (Auxílio Brasil, Vale Gás etc) e/ou “convencidas” pelo pastor. São 20% do eleitorado que deve ser reconquistado.
É aí que Lula deve entrar firme. Não só garantir a continuidade do Auxílio Brasil (com outro formato, claro), mas institucionalizar o Programa de Renda Mínima, vinculando sua fonte de financiamento à receita advinda da tributação de lucros e dividendos, mediante projeto ao Congresso Nacional. Ademais, deve promover o reajuste imediato de 10% do mínimo, elevando-o para R$ 1.430, e enviar projeto ao Congresso para garantir direitos trabalhistas aos milhões de trabalhadores na informalidade. Em suma: ou diz a que veio ou se tornará refém do Mercado.
Retrato do bolsonarismo
Embora derrotado, mesmo fazendo uso descarado da máquina pública, o bolsonarismo demonstrou força. Em artigo recente, a antropóloga Rosana Pinheiro Machado disse, com propriedade, que Bolsonaro foi capaz de aglutinar impulsos que antes estavam dispersos na sociedade, afinal o Brasil sempre foi líder em feminicídios; o que mais mata pessoas LGBT no mundo; que dizimou sua população indígena e que mais tardiamente tornou ilegal a escravidão, mas continua matando aos milhares os jovens negros das periferias.
Afirmou que o bolsonarismo opera pelas entranhas de ressentimentos e recalques múltiplos. Em sua trupe, aglutinou “cidadãos do bem” ensandecidos, uma espécie de “exército de Brancaleone”, articulados por empresários inescrupulosos (como no caso dos caminhoneiros) ou trabalhadores precários, que rechaçam a identidade de trabalhador, se autointitulando “empresários”, que acreditam que seu sucesso depende de seu esforço e da vontade de Deus, culpando os mais pobres pela dureza de sua vida. Esta turma ainda vai dar muita dor de cabeça.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia