RIO – Na pequena cidade cearense onde nasci e fui menino, havia só duas escolas, ambas primárias – rimando com precárias –, sediadas na mesma rua, na mesma quadra, uma a olhar para a outra. De um lado, as Escolas Reunidas, grande mas anêmico centro de ensino mantido pela Prefeitura Municipal. Deus sabia como, de manhã, as ER, que até o meio-dia ocupavam um enorme, inadequado e alugado salão de festas, sem qualquer divisória, carteiras, assentos só para as professoras mais idosas, cuja fala os alunos mal, muito mal podiam ouvir. Atrás delas, um quadro negro que, devido à distância, exigia de uns 90% dos alunos a visão perfurante dos heróis de histórias em quadrinhos.
Do outro lado da rua, em duas acanhadas salas de uma antiga residência, sobrevivia o Instituto Pio XI, também ele um poço de carências, criado por pais de família que, não desejando ver os filhos a debater-se no mingau das Reunidas, confiavam sua educação a um ex-seminarista, professor-fazia-tudo do Instituto… e nos imprevistos – aliás bastante previsíveis –, inventor-diretor de solenidades religiosas conforme imposições do nosso todo-poderoso pároco…
Mas, apesar de sua catolicíssima orientação, o Pio XI operava o milagre de misturar a maioria de alunos filhos de pais abastados com alguns nascidos de famílias que nadavam na escura e humilhante corrente da pobreza…
Nas Reunidas, garotas e adolescentes, alguns já quase adultos, memorizavam as aulas ditadas pelas professoras. Para os quarenta e poucos alunos do Pio XI, em alguns casos “estudar” também significava, explicitamente, decorar e ser capaz de reproduzir palavra por palavra as estereotipadas respostas.
Era esse formato didático adotado pelo Pio XI; o formato de uma coleção de manuais intitulada FTD, por nós, alunos, rebatizada Feijão Todo Dia – velada alusão ao método de escravização mental, cujo instrumentador não se encabulava de reduzir a memória de um importante e duradouro momento histórico a uma só pergunta, de escassas palavras, cuja resposta, em consequência, alguns alunos reduziam a um arroto do inevitável feijão servido na mesa dos pobres ou meio pobres, como prato principal, durante os 365 dias do ano…
– Quem libertou os escravos? – o livro perguntava em tom que parecia corresponder ao gesto corriqueiro de vibrar a imagem de uma palmatória, ou de uma chibata, diante do empalidecido rostinho do aluno.
– A Princesa Isabel, no dia no dia 13 de maio de 1888, – o(a) aluno(a) devia responder, um tanto a entoar, reduzindo o longo e amargo capítulo da escravidão negra no Brasil a uma data e ao nome de uma poderosa e supostamente progressista aristocrata.
Mas, justiça seja feita aos que havia muito lutavam pela democracia e o ensino secular, tudo a troco de quase nada. Foi pensando em professores e alunos como aqueles das duas pobres escolas de minha cidade que eu resolvi escrever, sem apoio de documento nenhum, este pequenino texto documental.
UMA VEZ QUE a repercussão dos fatos da crônica libertadora do século anterior começava a encolher – em muitas escolas, públicas e particulares, o valor pedagógico daqueles manuais de inspiração teimosamente obscurantista era defendido com crucifixos e ameaças da condenação ao Inferno.
A modernidade chegava aos andares inferiores da sociedade, a começar – dependendo do caso — pelo da História. Mas ainda havia, e certamente há, restos da muralha a serem derrubados.
Embora menos veloz que o desejado, a modernização e constante atualização de manuais escolares de História não chegou a ser cem por cento paralisada, mesmo nos piores momentos do século XX. Enquanto caía o ritmo de modernização dos manuais escolares, ante a esmagadora presença dos reis e reizinhos do mundo educacional, e embora o processo de atualização dos manuais de História andasse devagar e fosse trabalho incompleto, com marcas de timidez, aqui e ali, o progresso na adoção e uso de tais livros foi considerável.
Hoje contamos com um punhado de historiadores que, embora não se dediquem, de regra, a produzir manuais para escolares, têm a seu crédito conjuntos de obras históricas, cujos modos de dizer e explicar são exercícios constantes de iluminação dos fatos, sem desperdícios e esgotamentos das redes de significação.
Continuado exemplo nos tem chegado com Laurentino Gomes, um mestre paranaense que, há decênios, desperta e mantém nos leitores o interesse pelas suas obras sobre História. Êxito alcançado graças não somente ao seu contínuo interesse pela vida cultural do País, mas também pelo cuidado na colheita, pesagem, iluminação e apresentação dos fatos; a qualidade de seus conteúdos, a descoberta dos modos e medidas de sua capacidade para impulsionar o avanço histórico da grande comunidade nacional.
Cada livro de Laurentino, portanto, é um grande painel, que não se distingue só pelas suas peculiaridades formais, mas pelo modo sábio como essas peculiaridades são vistas, separadas, examinadas em seu essencial, aproximadas até se transformarem em materiais condensados, mas sem perda da essencialidade, prontas para se transformarem em elementos da narração dos fatos históricos.
Laurentino é um mestre na difícil arte de iluminar fatos e separá-los da corrente histórica e a ela devolvê-los depois de transformá-los em matéria histórica de indiscutível valor. Em cada caso – como já ocorreu com vários – condensações finas puderem ser apresentadas como essências dos fatos, não mais como mera junção de cores e tons na paleta do pintor.
É assim, mediante a valorização de gemas históricas e usando-as sabiamente para além do trato habitual do assunto, que ele desperta o interesse do leitor, cuja exposição e análise de suas relações representativas de uma época somente com grandes painéis, e como tal, um instrumento não apenas capaz de ir às raízes temporais-geográficas dos fatos apresentados, mas de valorizá-las, mediante o desvendar, questionar e valorizar a massa e a extensão, a intensidade e o valor de um fato que ajuda não apenas a construir um capítulo de nossa História.
Ao título do volume 1 da série – 1808 –, segue-se um subtítulo explicativo, quase jornalístico, com a gotinha de ironia permitida ao historiador: Como uma Rainha louca, um Príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.
Foi em 2007 que a série começou a existir para o grande público, com o aparecimento do volume acima citado. Três anos mais tarde apareceu o segundo: 1822, título ao qual segue-se um longo e bem explicativo subtítulo: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram dom Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado.
O terceiro título da série é 1889, assim sub-intitulado: Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil.
(*) Jornalista e escritor