Há 400 anos, migrantes fugindo das “guerras religiosas” na Europa começaram a erigir uma nova sociedade na América do Norte, que veio se tornar a maior potência do planeta. Mas sua história está marcada por preconceitos, perseguições e muito sangue.
Os puritanos anglo-saxões traziam, com sua nova religião, conceitos tortuosos de superioridade racial. Crentes de serem o “povo escolhido” e em terem um “destino manifesto”, não tiveram dúvidas em iniciar o massacre dos habitantes originários do novo continente. Carecendo de mão-de-obra, recorreram à escravidão de negros africanos, e na metade do século XIX, tomaram metade do território dos “indolentes” mexicanos.
No surto migratório da 2ª metade do século XIX, o preconceito foi estendido aos católicos irlandeses e italianos e ortodoxos eslavos e, no século XX, aos amarelos” (chineses, japoneses, coreanos e vietnamitas) e islâmicos, sejam árabes, iranianos ou afegãos.
Mas as maiores vítimas sempre foram os afro-americanos, que hoje são 40 milhões. Em 1925, há menos de 100 anos, a Ku Klux Klan arregimentava cerca de 5 milhões de adeptos, dispostos a perseguir e assassinar negros pelo simples fato de serem negros.
Muhammad Ali, Martim Lutter King e Malcom X
Há 60 anos, dois grandes líderes mobilizavam milhões na luta pelos direitos dos negros: Martim Lutter King e Malcom X. Mas houve um terceiro, notabilizado como o maior pugilista da história, Muhammad Ali, que não marchou, como King, e não se armou, como Malcom X, mas fez como poucos o uso da palavra contra a classe dominante racista.
Nascido Cassius Clay no Kentucky há 80 anos (17/01/42), tornou-se em 1960, campeão olímpico e, em 1964, campeão mundial de pesos-pesados. Teve seu primeiro embate com o establishment ao anunciar sua conversão ao islamismo, repudiando a resignação religiosa (e social) que se exigia dos afro-americanos. Questionado sobre sua adesão à “Nação do Islã”, retrucou: “E como você se sente ao compartilhar crenças religiosas com Hitler?”.
Resistência
Consciente de sua condição: “O boxe é um monte de brancos assistindo um negro socar outro negro”, Ali representava a resistência à supremacia branca e desafiava a ordem sociorracial: “Sou o maior, pode ir se acostumando comigo: negro, confiante e arrogante”.
Em 1966 foi convocado pelo Exército para a Guerra do Vietnam, mas se recusou, desferindo um uppercut no queixo do Imperialismo norte-americano: “Por que atirar neles? Nenhum vietcong me chamou de preto, nunca me bateram, não roubaram minha nacionalidade nem estupraram e mataram minha mãe e meu pai, por que eu lutaria contra ele?” E acrescentou: “Me pedem para lançar bombas no povo marrom do Vietnam enquanto os negros do Kentucky são tratados como cachorros”.
Inimigo real
Ao ouvir que era dever dos cidadãos norte-americanos irem à guerra, disparou: “Assassinam e queimam uma nação pobre para que continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor escura mundo afora. O inimigo real de meu povo está aqui”. Ao ser condenado à prisão, não se curvou: “Então eu vou para a prisão? Nós estamos na prisão há 400 anos!”.
Absolvido, recuperou o cinturão em 1970, novamente em 1974, só o perdendo em 1980. Em 1976, deferiu um jab no domínio sociocultural branco após Hollywood lançar Rock Balboa: “O negro sair por cima iria contra os ensinamentos da América. Tiveram que criar Rock, uma imagem branca na tela, em contraponto à minha. Os EUA têm que ter suas imagens brancas: Jesus, Mulher Maravilha, Tarzan, Rock”. Morto com a doença de Parkinson em 2016, personalidades como Ali fazem imensa falta.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasília Capital