Abstenções da China, Índia e Paquistão em relação às sanções à Rússia propostas pelos EUA e UE sinalizam a formação de um novo eixo geopolítico que desafia o predomínio ocidental
Júlio Miragaya (*)
Durante séculos, os principais Estados do planeta se situavam no continente asiático, assim como lá também ocorreram os mais notáveis feitos da humanidade. Mesmo os “europeus” impérios Helenístico e Romano, não exerceram hegemonia no mundo, pois havia Estados na China, Índia e Pérsia que com eles rivalizavam, além do que, a parte mais civilizada e próspera desses impérios abrangia sua porção asiática.
A hegemonia europeia começou a se esboçar a partir do século XVI, com as grandes navegações, e se firmou após o século XIX, com a consolidação do sistema capitalista, a formação dos grandes impérios coloniais europeus e a ascensão dos EUA. A hegemonia ocidental perdurou nos últimos 200 anos, mas hoje se vê desafiada pelo “renascimento” das potências asiáticas.
As abstenções da China, Índia e Paquistão em relação às sanções à Rússia propostas pelos EUA e União Europeia sinalizam a formação de um novo eixo geopolítico que desafia o predomínio ocidental. Trata-se de quatro potências nucleares, com quase ¼ da superfície do planeta, 42% de sua população e que são hoje, pelo critério de PPC (Paridade do Poder de Compra), o 1º, 3º, 6º e 20º PIB do mundo.
E são países com profundas diferenças com o “Ocidente”: a China, que viveu o Século da humilhação” entre a Guerra do Ópio (1839/42) e a Revolução Chinesa de 1949; a Rússia, que sofreu várias invasões (todas rechaçadas) pelas potências europeias; e a Índia e o Paquistão, cujos povos foram espoliados pelo Império Britânico por 150 anos.
Mas há ressentimentos e conflitos envolvendo esses quatro países: a China, no ‘século da humilhação”, perdeu para o Império Russo 3,3 milhões km² (Mongólia, Manchúria Exterior, Tuva e parte do Turquestão Chinês) e tem problemas de fronteira com a Índia (Arunachal Pradesh e Aksai Chin). Já a Índia tem grave conflito com o Paquistão em torno da posse da Cachemira e há perseguição à minoria islâmica na Índia e à minoria hinduísta no Paquistão.
Mas tais conflitos vêm se atenuando nos últimos anos e hoje os quatro países integram a Organização para Cooperação de Shanghai, que busca a cooperação econômica e militar, englobando o Irã e os países da Ásia Central, não por coincidência, todos participantes da “Nova Rota da Seda”. E, para desatino do Ocidente, a este grupo devem se somar outros países emergentes e igualmente vítimas das potências ocidentais, como Indonésia, Vietnam e Turquia, para não citar países da África e da América Latina.
A burguesia fede!
A frase de Cazuza poucas vezes caiu tão bem quando se observa a inauguração da Cidade Matarazzo, complexo imobiliário de ultra luxo em São Paulo. Compreende torres corporativas e de apartamentos de luxo, um shopping com 70 lojas de marcas estrangeiras inéditas no Brasil e o hotel Rosewood, de seis estrelas, com diária de R$ 7.500. No bar do hotel, uma garrafa de whisky The Macallan não sai por menos de R$ 13.000, e o petisco de “caviar com blinis e chantilly de vodka”, com 120 gramas, custa módicos R$ 4.600.
E lembrar que grande parte deste seleto público são os que gozam de isenção de tributação sobre a renda oriunda de lucros e dividendos. Detalhe: o “parque dos ricaços” foi construído onde antes havia a Maternidade Condessa Matarazzo (onde foram realizados mais de 700 mil partos) e o Hospital Matarazzo, que tinha um sugestivo slogan; “A saúde dos ricos para os pobres”. Abertos em 1904, ambos foram fechados em 1993.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia