Júlio Miragaya (*)
Após a derrota no Marco do Saneamento, a semana foi recheada de “porradas” no governo, com a completa desfiguração, pelo relator do “aliado” MDB, da MP 1.154, que estrutura os ministérios: a) desidratação do MMA, com a perda do CAR, da ANA e de três Sistemas de Gerenciamento e, de lambuja, aprovação da MP do Bolsonaro reduzindo a proteção da Mata Atlântica (364 x 66); b) desfiguração do novo Ministério dos Povos Indígenas, com a perda da demarcação de Terras Indígenas; c) transferência de parte da CONAB, do MDA para o MAPA. É pouco? A ABIN volta para o GSI e o COAF para o BC.
Após impor sucessivas derrotas a Lula, o presidente da Câmara tem sido claro: “O Executivo tem que entender que não governa sozinho. Lula tem que entender que o Brasil de 2023 não é o de 2003. O Congresso Nacional vai bloquear qualquer tentativa do presidente de retroceder nas reformas econômicas aprovadas nos últimos anos no sentido de ampliar o que é liberal (leia-se Temer e Bolsonaro). E ele lista: Marco do Saneamento, Privatização da Eletrobras, Lei das Estatais, Reforma Trabalhista, Independência do BC.
E afirma: “O governo Lula não tem força no Congresso para avançar com temas como a Reforma Tributária”, sugerindo que não irá além da simplificação da estrutura tributária. Ou seja, esqueçam a tributação dos mais ricos. Finaliza assim: “Enquanto Lula não nomear os cargos do segundo escalão pendentes e, principalmente, não liberar as emendas parlamentares pendentes, nada no Congresso será aprovado”.
E como reage o governo? Lula disse que “a desfiguração da MP 1.154 é a coisa mais normal” (ignorando que nunca o Congresso alterou dessa forma uma proposta de estruturação de um novo governo). O líder na Câmara, Zeca Dirceu, disse que “É um erro não dividir o poder com Lira”. Já um parlamentar da base foi mais direto: o governo está entregando os anéis para preservar os dedos.
O eleitorado brasileiro deu 51% dos votos a Lula, mas apenas a metade (27%) para candidatos à CD dos nove partidos que o apoiaram, elegendo 139 deputados federais em 513. Os de extrema-direita, PL e Novo, elegeram 102 (20%). O grosso dos eleitos foi dos partidos de centro-direita, que se subdividem em dois grupos: os com cargos no governo (PSD, MDB e UB), que elegeram 144 (28%) e os que estão “namorando” os cargos (PP, Republicanos, PSC e Patriota), que elegeram 98 (19%). Esses sete partidos, somando 242 deputados (47% da Câmara) delegaram a Lira a negociação de seus interesses. Resta um grupo de três partidos decadentes (PSDB, Cidadania e Podemos), com 30 parlamentares (6%), que oscila entre Lira e a oposição.
Duas votações foram bem elucidativas da situação atual. Na da nova Regra Fiscal, dos 372 votos favoráveis, a base de centro-esquerda deu 118 (com PSol e Rede, seriam 131), mas quem garantiu a aprovação foi a base de Lira, com 200 votos, taxa de fidelidade de 90%. Os demais 54 vieram da direita decadente (24) e do PL não bolsonarista (30).
Por que razão? Simples, o sistema financeiro gostou da proposta do governo. Cabe aqui um parêntese: associar o voto do PSol ao do PL e do Novo, como o fazem alguns petistas, é pura calhordice. O PSol votou contra o novo marco fiscal porque o vê como um projeto que, em última instância, busca a geração de superávit primário, preservando a lógica de manter um teto de gastos. Mesmo entendimento tiveram 22 dos 68 deputados do PT, nada menos que 1/3 da bancada, que só votaram sim por submeterem-se ao centralismo democrático.
Já nas votações do pedido de urgência da MP emitida por Bolsonaro que trata do Marco Temporal para homologação das Terras Indígenas e na do Marco do Saneamento, o governo apanhou feio, tendo, respectivamente, 131 e 135 votos, que é a real base de Lula, implacavelmente batido pelos 324 e 295 votos, cerca de 40% desses vindos de partidos no governo (UB, PSD e MDB), mas alinhados na Câmara e na ideologia com Lira.
No andar da carruagem, com apenas 5 meses de governo, já se foram quase todos os anéis. Conseguirá manter os dedos?
O que é, o que é? Ambos são nordestinos, seus nomes têm 4 letras, começam com a letra l (faz o L) e comandam o Brasil?
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, foi presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia