Júlio Miragaya (*)
Nas últimas semanas, muito se tem discorrido sobre genocídio. O
massacre de palestinos em Gaza seria genocídio? É comparável ao
Holocausto Judeu ocorrido em 1939/45? O que, efetivamente, pode ser
considerado genocídio? De acordo com a “Convenção para a Prevenção e
Punição de Crimes de Genocídio”, aprovada em dezembro de 1948 pela
ONU, genocídio foi assim definido: “Atos (assassinatos, maus tratos,
esterilização etc.) cometidos com a intenção de destruir, total ou
parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
Genocídios, desde os primórdios da civilização, geralmente ocorrem em
decorrência de guerras. O princípio para cometer o genocídio é caracterizar
os povos a serem vitimados como inferiores, de segunda classe. Enfim,
desumanizá-los. Assim agiu o Egito na conquista da Núbia no século XXXI
AC; e os Impérios Babilônico, Persa e Helênico em relação a diversos povos
do Oriente Médio entre os séculos IX e II AC e o Império Romano, com o
massacre de povos celtas e germânicos.
Na Idade Média, os principais genocídios foram cometidos pelos
Impérios Mongol (Gengis Khan e Kubalai Khan) no século XIII; Timúrida
(Tamerlão) no século XIV e Mogol (Babur) no século XV, que juntos,
estima-se, mataram mais de 80 milhões de pessoas. Tribos e povos inteiros
desapareceram, pois a regra básica era matar os homens e escravizar as
mulheres e crianças. A esses massacres, deve-se acrescentar as Cruzadas, no
século XII e XIII, que vitimou mais de 2 milhões de pessoas.
Ocorre que, por motivações ideológicas ou geopolíticas, muitos
classificam genocídio como atos de guerra e outros eventos como genocídio.
É o que fazem, por exemplo, Israel e as “democracias” ocidentais que o
apoiam, considerando a ofensiva israelense em Gaza – que já matou mais 40
mil palestinos, feriu outros 80 mil, encarcerou 12 mil e destruiu a
infraestrutura local – como guerra contra o terrorismo. Aliás, desde 1947, já
são mais de 120 mil palestinos mortos.
Mas, se negam genocídio em Gaza, esses mesmos países classificam
como genocídio o chamado Holodomor (morte por inanição, em ucraniano)
que matou 3 milhões de ucranianos em 1932/33, 10% da população de 30
milhões. De fato, foi uma tragédia, mas não um ato deliberado de matança, e
sim consequência da desastrosa “política de coletivização forçada da terra”
promovida por Stalin, não focada apenas na Ucrânia. Tanto que, no
Cazaquistão, os que morreram por fome no mesmo período foram 2 milhões,
25% de uma população de 8 milhões. E outros 3 milhões morreram no
Cáucaso e no sul da Rússia.
Não se trata aqui de “passar pano” para Stalin, ditador cruel e
responsável pela degeneração do primeiro Estado Socialista. Deliberada foi
a matança ordenada por ele nos chamados Processos de Moscou (1936/38),
período em que foram executados cerca de 500 mil soviéticos, incluindo
metade da oficialidade do Exército Vermelho e praticamente toda a direção
do Partido Bolchevique que fizera a Revolução em 1917.
Voltando às mortes por inanição, se foi genocídio na Ucrânia, o que
dizer da morte por fome de 72 milhões de indianos no período de domínio
da Índia pela “civilizada” Grã-Bretanha, em decorrência do roubo das terras
dos indianos pelos britânicos, reduzindo a produção de arroz e outros
alimentos para ampliação do cultivo de chá, algodão, linho, juta e ópio.
Morreram 31 milhões em três grandes surtos de fome na segunda metade do
século XVIII; 36 milhões em seis surtos no século XIX e 5 milhões em
1943/44. Por que razão as “democracias” ocidentais não classificam tal
matança como genocídio?
O mais conhecido caso de genocídio foi o Holocausto Judeu, no qual
5,3 milhões de judeus foram mortos pelos nazistas (56% dos 9,4 milhões que
viviam na Europa, sendo 3 milhões nas câmaras de gás em campos de
concentração, 1,4 milhão fuzilados e 900 mil de fome nos guetos). Também
são bastante conhecidos o dos armênios pela Turquia em 1915/17 (1,5
milhão de mortos); o promovido pelo Khmer Vermelho em 1975/79 (1,7
milhão) e o dos Tutsis pelos Hutis em 1994 (800 mil).
Mas não foram apenas os judeus as vítimas de uma política de
genocídio pelos nazistas. Os ciganos, que eram cerca de 1,5 milhão na
Europa, tiveram cerca de 600 mil mortos (40%). Também o massacre de
eslavos foi uma política deliberada dos nazistas, visto que a ocupação das
terras habitadas por povos eslavos (Lebensraun) e a supressão da população
local (Generalplan Ost) durante a 2ª Guerra foi o aprofundamento da
expansão para o leste (Drang nach Osten) que os Cavaleiros Teutônicos
iniciaram ainda no século XIII, conquistando territórios de poloneses,
pomeranos, silesianos, prussianos e lituanos.
Nas regiões ocupadas pela Wehrmacht no leste europeu, nada menos
que 26 milhões de civis eslavos (9% do total de 292 milhões) foram mortos
(fuzilados ou por fome e maus tratos), sendo 17 milhões de soviéticos. Já na
“civilizada” Europa Ocidental ocupada ou em guerra contra os nazistas, o
número de civis mortos foi de 750 mil (0,6% do total de 121 milhões).
Outro exemplo da política de extermínio dos eslavos é fornecido pelo
percentual de prisioneiros de guerra mortos (executados ou por falta de
alimentos nos campos de prisioneiros). Dos 5,4 milhões de soviéticos
capturados pelos nazistas, nada menos que 3,3 milhões foram mortos (61%),
duplamente penalizados, por serem eslavos e comunistas. Já entre os 230 mil
prisioneiros de guerra norte-americanos e britânicos, 8,2 mil (3,5%) tiveram
o mesmo destino. Mas tudo isso é omitido ou secundarizado pela
historiografia oficial.
Até no Holocausto Judeu, os residentes na Europa Oriental tiveram
tratamento mais implacável. Dos 9,4 milhões de judeus europeus, cerca de 8
milhões residiam na região e nada menos que 4,9 milhões (61%) foram
mortos pelos nazistas. Já na Europa Ocidental, onde residiam 1,4 milhão de
judeus, os mortos pelos nazistas foram 400 mil (28%).
Mas, como a história é contada pelos vencedores, genocídios que
vitimaram dezenas de milhões, como os promovidos pelas potências
colonialistas europeias, são oportunamente esquecidos ou minimizados. Na
América do Norte, britânicos e franceses mataram entre 5 e 10 milhões de
indígenas nos séculos XVII a XIX. Na América Hispânica, os espanhóis
dizimaram a população indígena, matando nada menos que 33 milhões nos
séculos XVI e XVII, ao passo que os portugueses, apenas no século XVI,
dizimaram 70% dos 5 milhões de indígenas que residiam no litoral
brasileiro.
No continente asiático, além da matança promovida pelos britânicos na
Índia e na China (25 milhões na Rebelião Taiping em 1851/64), os Países
Baixos cometeram o assassinato de 2 milhões de indonésios no século XIX;
os EUA mataram 1 milhão de filipinos em 1898/1900 e os franceses
mataram 1,5 milhão na Indochina entre 1883 e 1955. E na Austrália e Nova
Zelândia, os povos nativos foram dizimados pelos britânicos nos séculos
XVIII e XIX.
Na África, a matança se deu em dois momentos. Inicialmente, com a
escravização, na qual morreram cerca de 30 milhões de africanos: 15
milhões resistindo à captura; dos 27 milhões de capturados, 11 milhões
(40%) morreram no trajeto até o porto de embarque e 1 milhão nas quatro
semanas à espera do embarque para as Américas; dos 15 milhões de
embarcados, 2,5 milhões morreram nos navios negreiros; e dos 12,5 milhões
de desembarcados, 500 mil no trajeto até as minas e plantações.
Já na segunda metade do século XIX ocorreu a matança no processo de
ocupação do território e formação de colônias. Morte de 1,5 milhão de zulus
pelos britânicos; 8 milhões de congoleses pelos belgas; 4 milhões na África
Ocidental pelos franceses, além das centenas de milhares pelos alemães,
italianos, portugueses e espanhóis.
Na segunda metade do século XX, a matança europeia teve como
motivo reprimir a luta pela libertação dos povos colonizados, com destaque
para a morte de 1,5 milhão de argelinos pelos franceses de 1954 a 1962. O
eurocentrismo classificava a todos, ameríndios, asiáticos e africanos, como
seres inferiores.
Quando o britânico George Orwell cunhou a expressão “a história é
escrita pelos vencedores”, consta que foi uma crítica aos regimes nazista e
stalinista. Porém, como se vê, não se pode deixar de fora do controle e
manipulação da informação as chamadas “democracias liberais”.
(*)Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan (atual IPEDF) e membro do Conselho Federal de Economia