Imagine a seguinte narrativa alegórica: o Brasil, num dado momento de sua história, sofreu um processo de ocupação de seu território por um povo, até então disperso por vários países, que resolveu estabelecer seu “estado nacional” em território brasileiro. Ao longo de 60 anos, milhares de integrantes desse povo migraram pra cá e compraram terras equivalentes a 6% do nosso território (o equivalente ao estado da Bahia). Isto gerou um conflito entre os brasileiros e os recém-chegados. Ao final deste conflito, os estrangeiros mantiveram o controle da Bahia e se apropriaram de mais 10% do território, agora São Paulo e Minas Gerais.
A crise foi levada à ONU. Lá, as potências globais resolveram dividir o Brasil entre os brasileiros e os estrangeiros, e além dos 3 estados cedidos, o novo país receberia mais 37,5% do território brasileiro, compreendendo o Pará, o Amazonas e Roraima) mais Rio de Janeiro e Espírito Santo, somando 53,5% do território brasileiro.
O Brasil reagiu, e, junto com seus aliados, declarou guerra ao novo país, mas foi derrotado. E ao final da guerra perdeu mais 24,5% do território, compreendendo o restante do Nordeste e a região Norte (exceto o Amapá), a região Sul e o DF, com milhões de brasileiros sendo expulsos e se tornando refugiados na Argentina, Uruguai e Paraguai.
Restou ao Brasil cerca de 21,7% do território original, a Região Centro-Oeste e uma pequena faixa litorânea isolada no extremo norte, o Amapá. Mas os estrangeiros queriam ampliar seu território, e foram instalando colônias no Mato Grosso, expulsando os brasileiros de suas terras. Os do Mato Grosso, agora minoria, passaram a ser governados e policiados pelos estrangeiros. Assim, a área sob gestão do governo brasileiro (de forma parcial) ficou limitada a pífios 9,5% do território original (Goiás e Mato Grosso do Sul, além do isolado Amapá).
Embora seja uma alegoria, a narrativa tem seu correspondente na geopolítica mundial: o Brasil corresponde à Palestina original; a região Centro-Oeste representa a Cisjordânia; o Mato Grosso à Área C da Cisjordânia, onde foram instalados 500 mil colonos israelenses, sob gestão do Estado de Israel; Goiás e Mato Grosso do Sul representam as áreas A e B da Cisjordânia, sob gestão parcial da autoridade palestina; e o Amapá corresponde à Faixa de Gaza, com uma densidade demográfica 1.240 vezes menor.
De 2008 a 2022, o conflito israelo-palestino matou 6.140 palestinos e 280 israelenses, o que não justifica os criminosos ataques do Hamas em 7 de outubro, matando 840 civis israelenses e 300 militares. Mas o que se vê é uma retaliação desproporcional e ainda mais criminosa realizada pelo governo ultradireitista de Israel. Em quatro meses de bombardeios diários, mais de 32 mil palestinos foram mortos (4,7 mil sob os escombros), sendo que 81% (26 mil) não são “terroristas do Hamas”, e sim crianças, mulheres e idosos, aos quais se somam mais de 70 mil feridos e mutilados.
Mas a destruição vai além dos mortos e feridos: são 370 mil casas destruídas ou danificadas; 85% dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza deslocados de suas residências; 55 hospitais, 423 escolas e 164 mesquitas e igrejas destruídas ou danificadas. E Israel continua impedindo a entrada de alimentos, água e remédios para a população local.
A realpolitik torna impensável retornar à situação pré-partilha de 1948. O Estado de Israel é uma realidade e ponto. Não há como expulsar 7,5 milhões de judeus da Palestina. Assim como é impensável pensar no México retomando a Califórnia e o Texas dos EUA; a Alemanha retomando a Silésia da Polônia ou a Bolívia retomando o Acre. Mas se a solução de um Estado único englobando judeus e palestinos se tornou impraticável, a solução de dois estados se impõe.
Uma paz definitiva na Palestina pressupõe o imediato fim dos bombardeios a Gaza e o fim do bloqueio à região realizado por Israel; a desocupação total da Área C da Cisjordânia pelos 500 mil colonos; a desocupação de Jerusalém Oriental; a gestão plena pelos palestinos da Cisjordânia e de Gaza; a indenização aos palestinos pelas terras e lares tomados ao longo de 76 anos e a concessão aos 2 milhões de palestinos residentes em Israel dos mesmos direitos desfrutados pelos cidadãos israelenses.
Mas os obstáculos à paz são imensos, a começar pelo apoio da maioria da sociedade israelense à política belicista do governo Netanyahu; passa pela hipocrisia dos governos árabes, que apenas fingem apoiar a causa palestina; e esbarra no maior deles: a política do imperialismo norte-americano para o Oriente Médio.
Além de sustentar a política belicista israelense, avalizando o massacre em Gaza e os bombardeios ao Líbano e à Síria), o patético Biden, desesperado ante a previsível derrota para Trump em novembro, resolveu mostrar o porrete: coordenou o corte da ajuda financeira à ACNUR pela suspeita de 12 dos 13 mil funcionários da agência da ONU terem atuado em 7 de outubro e bombardeou aliados iranianos na Síria, Iraque e Yemen.
Infelizmente estamos mais pertos de um conflito generalizado na região do que na ansiada paz na Palestina.