No frio congelante de junho, em uma Brasília ainda despelada, a festa rolava solta. Em barraquinhas estilizadas, os candangos se reuniam para matar a saudade de casa, mesmo de longe. A Festa dos Estados mobilizava toda a nova capital com sua passagem direta para qualquer lugar do país por meio de comida, bebida e cultura. História, tradição e saudosismo marcam a celebração que se transformou no principal evento cultural e turístico da cidade. Além de tudo, era realizada com o nobre fim de ajudar uma entidade com fins filantrópicos, a Casa do Candango.
O evento surgiu lá pelos idos do nascimento de Brasília. Foi organizado para captar recursos e manter as creches e os abrigos da Casa do Candango, criada para amparar os mais necessitados na época do surgimento da capital. O encontro tornou-se indispensável. Seu auge ocorreu entre 1960 e 1980, quando a diversidade dos moradores e a saudade da terra natal eram retratadas nas barracas que representavam todos os estados brasileiros.
Era lugar de encontrar os amigos, de paquerar, de lembrar de casa. Naquela época não havia restaurantes regionais como hoje. A gente só podia encontrar comida típica nesses eventos, disse Carlos Eduardo Monteiro, filho de uma das fundadoras da Festa dos Estados
A primeira edição foi realizada em 1961, no formato de festa junina na entrequadra da 105 Sul, em frente ao local conhecido como Bloco 5. Cada barraca tinha motivos de uma unidade da Federação, com o que melhor representava sua cultura, costumes e culinária trazidos e bancados pelos governos estaduais. Os trabalhos eram completamente voluntários e a entrada, gratuita.
A festa era sempre na última semana de junho, quando o frio mais castigava a população e a “fumaça” saía das bocas dos frequentadores. Isso, porém, não desanimava ninguém. Saiam dos armários as melhores roupas, com direito a luvas, cachecóis e até ponchos, que marcaram época e um período. Os candangos, espalhados pelos acampamentos, compareciam em peso. Era momento de lazer.
Filho de Yolanda Monteiro, uma das fundadoras da festa, Carlos Eduardo Monteiro recorda, emocionado, detalhes da atração. “Era lugar de encontrar os amigos, de paquerar, de lembrar de casa. Naquela época não havia restaurantes regionais como hoje. A gente só podia encontrar comida típica nesses eventos”, conta o advogado que chegou à capital aos oito anos. A mãe manteve na parede de casa lembranças da festividade até seus últimos suspiros.
Era nostalgia pura. Na barraca do Amazonas, em época de zona franca, clientes faziam filas para comprar calças jeans. Porco no rolete só era encontrado no espaço do Paraná. Quadrinha era figurinha carimbada na de Sergipe. Vatapá e caruru apenas na Bahia do quadradinho.
Nostalgia pura. Na barraca do Amazonas, em época de zona franca, clientes faziam filas para comprar calças jeans. Porco no rolete só era encontrado no espaço do Paraná. Quadrinha era figurinha carimbada na de Sergipe. Vatapá e caruru apenas na Bahia do quadradinho. E, assim, todos eram levados de volta para casa pelo paladar. Ou conheciam novos lugares dessa maneira. Em certo momento, começaram a chegar representantes de países como Japão e Estados Unidos, que, mais tarde, fariam a Festa das Nações.
“Como naquela época havia dificuldades dos alimentos chegarem em Brasília, o governo emprestou aviões para os responsáveis pelas barracas trazerem ingredientes de cada estado. Assim, era possível fazer as comidas típicas”, conta Monteiro. Como contrapartida da ajuda dos estados, parte do arrecadado era enviado ao local de origem.
Nos anos áureos, cada estande contava com a primeira-dama de seu estado, responsável pela divulgação do lugar. Eram as “Patronces”. Pelo que lembra Carlos Eduardo Monteiro, não era de graça: elas buscavam votos para seus maridos candidatos. A atuação diminuiu depois que os moradores da capital passaram a votar no território do Distrito Federal.
Ficou pequeno
Com sucesso absoluto, os espaços ficaram pequenos e a festa foi migrando. Da 105 Sul, passou para a 107 Sul, em um grande descampado. Depois, passou a ser realizada atrás do Cine Brasília, na entrequadra 106/107 Sul. O Setor Hoteleiro Norte também foi palco da festividade, quando nada tinha, em um Centro de Convenções construído em madeira em formato arredondado.
Por vários anos, o evento tomou conta da área próxima à Torre de TV, entre a feira e a Funarte. Por fim, funcionou no Pavilhão do Parque da Cidade, que teria sido criado exatamente para esse fim porque gastava-se demais com a estrutura de madeira montada todo ano pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap).
Parte da história
A pioneira Terezita Braga Telles foi líder de barracas. Colaboradora da Casa do Candango, ela tratava com as autoridades os detalhes da organização. “Surgiu como reunião das esposas das autoridades e se tornou o congraçamento de todos os estados do país”, define. Nascida em Belém (PA), ela se mudou para o Rio de Janeiro ainda na infância, onde cresceu e casou-se. Ela mudou-se para Brasília na época da construção.
“Era uma beleza. Os hotéis ficavam lotados de tanta gente que vinha prestigiar a festa”, conta. Aos 81 anos, com a saúde debilitada, Terezita se emociona ao lembrar do evento. Sua parte preferida, garante, eram as atrações locais trazidas para se apresentarem na capital. “Certa vez o violeiro Almir Sater veio do Mato Grosso do Sul. Ele pegou um versinho meu e pediu para musicar. A música ficou linda!”, recorda.
Em entrevistas concedidas ao Programa História Oral do Arquivo Público do DF, pioneiros contaram suas experiências com a festividade. Waldemar Alves de Magalhães chegou à então futura capital em 1957: “Eu tive a felicidade de colocar nome nas duas barracas que estavam diretamente sobre a minha administração. Os outros também foram colocando os nomes das origens de cada estado, daí surgiu o nome da festa”, revelou.
Maria Victoria Moreira Caldas foi funcionária da Companhia da Nova Capital, onde atuou como secretária de Israel Pinheiro. Ela contou que a temperatura baixa castigava os frequentadores: “Os estados todos participavam e países também. A festa era boa, durava a noite inteira. Agora, era um frio danado, a gente tinha que tomar quentão”, lembra.
Atual vice-presidente da Casa do Candango, Margarida Kalil lembra da importância política, social e econômica que o evento tinha na capital. A última festa foi realizada em 2013, mas longe da representatividade que alcançou nas primeiras décadas. “Era um grande encontro do povo brasiliense, onde todos os estados se agregavam com os fins mais nobres possíveis”, define.