Aquilo que vinha sendo constantemente alertado e que seria inevitável acontecer algum dia, aconteceu: a Câmara dos Deputados, por larga margem, deu uma desidratada no Fundo Constitucional do DF. É provável que no Senado a modificação seja derrubada, mas o fato é que a votação expressa o pensamento da ampla maioria dos congressistas, de que não se justifica que a Unidade Federativa com maior PIB per capita do País seja a única a receber da União recursos para bancar integralmente a área de segurança pública e mais da metade dos gastos nas áreas de saúde e educação públicas – uma bolada de R$ 23 bilhões em 2023.
Esses 23 bi significam R$ 7.870 per capita. Como esperar que um parlamentar de um estado nordestino, como o Maranhão – que tem um orçamento per capita de R$ 3.750 – defenda que o DF, cujo orçamento per capita sem o FCDF já é de R$ 11.780, receba mais R$ 7.870 per capita da União? No total, perfazem R$ 19.650, disparado o maior orçamento per capita do Brasil e nada menos que 424% superior ao do estado de Alcione e Joãozinho Trinta.
Mas há algo que pode fazer esse parlamentar mudar sua percepção, e envolve uma região muito próxima a Brasília, com indicadores sociais tão ruins quanto os do Norte/Nordeste: o DF compartilhar os recursos do Fundo com o Entorno Metropolitano. As assimetrias entre o DF e o Entorno são as maiores entre núcleo e periferia dentre as 15 principais metrópoles do País. Se a população do Entorno (1,22 milhão) é cerca de 30% da população metropolitana (4,21 milhões), a sua participação no PIB total não passa de 7,5% (o PIB do DF somou R$ 265,85 bilhões em 2020, 12 vezes maior que o PIB conjunto dos 12 municípios metropolitanos, de R$ 21,72 bi).
Disparidade ainda mais acentuada ocorre com a receita orçamentária. Se em 2023 o orçamento do DF é de R$ 57,5 bilhões, o orçamento dos 12 municípios do Entorno Metropolitano não chega a R$ 4 bilhões, quase 15 vezes menor, resultando num orçamento per capita de R$ 3.200, seis vezes inferior ao do DF, embora seja muito mais dependente e carente de serviços públicos.
O Entorno Metropolitano é “filho” de Brasília. Não fosse a transferência da capital, a região provavelmente continuaria sendo eminentemente rural e escassamente povoada e seus parcos 70 mil habitantes não teriam se multiplicado por 20 vezes. Se as chamadas ‘cidades-satélites’ do DF surgiram quando o povo mais pobre não “cabia” no Plano Piloto e suas adjacências, o Entorno surgiu quando este povo sequer “cabia” nas cidades-satélites. Esses municípios não podem ficar condenados a serem eternamente cidades-dormitório. Têm que ter condições de se desenvolverem e, para tanto, precisam de recursos financeiros que permitam investimentos em infraestrutura social e urbana.
Venho dizendo há anos o que disse em entrevista na edição 623 deste Brasília Capital Maria Caroline Fleury, secretária do Entorno do DF do Governo de Goiás: “Recursos do FCDF poderiam ser utilizados na rede hospitalar e na rede de ensino na região. Se as pessoas do Entorno tivessem boa assistência médica nos hospitais locais, assim como escolas de boa qualidade, não precisariam se deslocar para Brasília em busca de atendimento, reduzindo a pressão sobre os equipamentos públicos do DF”.
Em 2012, em evento de lançamento da Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios (PMAD), realizada nos 12 municípios do Entorno, a Codeplan apresentou à Associação dos Municípios Adjacentes a Brasília (AMAB) o projeto “10% do FCDF para uma Região 100% carente”. Parece óbvio: a melhor defesa do FCDF é compartilhá-lo com o Entorno Metropolitano, o que lhe conferiria uma robusta justificativa social.
Ocorre que a miopia (e egoísmo) dos políticos brasilienses, inclusive os de esquerda – que sobrepõem o interesse eleitoral a uma ação estratégica para reduzir o enorme fosso entre o “quadradinho” e seu entorno miserável – não dá margem para que tais propostas prosperem. Se apenas 10% do FCDF (R$ 2,3 bilhões) fossem destinados para nossa periferia, representaria um acréscimo de 60% em seus orçamentos. Já passou da hora da sociedade e dos políticos brasilienses deixarem de virar as costas para nossos vizinhos.