Júlio Miragaya (*)
O forte suprimento de armamento pesado pelos EUA e demais países da Otan para a Ucrânia aumentou substantivamente sua capacidade de resistência aos russos, arrefecendo o ritmo da ofensiva do exército de Putin e fazendo com que a “guerra de atrito” deva se prolongar sem prazo para seu término, com prenúncio de mais milhares de mortes.
A invasão russa à Ucrânia visava impedir o ingresso do país na Otan. Mas hoje está claro que isto tende a ocorrer, até pela associação de países historicamente neutros, como Finlândia e Suécia. Como para a Rússia é inaceitável a presença de tropas e armamentos da Otan (dos EUA) a poucos quilômetros de algumas de suas cidades (Rostov, Belgorod, Orel, Volgogrado, Voronej), é provável que a Rússia busque ocupar as regiões ucranianas limítrofes a seu território. Vai incorporá-las à Rússia? Provavelmente não, mas talvez constituir dois ou três “Estados-tampões”.
Este é um recurso muito utilizado no cenário geopolítico para acomodar interesses entre duas potências em conflito. Foi o papel atribuído ao Afeganistão diante do choque de interesses na Ásia, entre o Império Britânico e o Império Russo, no final do século XIX, e o que justificou a criação da Bélgica “bilingue” em 1830, pós Congresso de Viena (1815), acomodando interesses conflitantes entre a França “católica” e a Grã-Bretanha, a Prússia e os Países Baixos, “protestantes”. O mesmo propósito explica o reconhecimento como nação independente da Banda Oriental do Uruguai pelo Império do Brasil e a República Argentina em 1828.
Mas quais seriam os limites, as justificativas e as acomodações de interesses possíveis para a criação desses Estados-tampões na Ucrânia? O fato de terem sido. Há 200 ou 300 anos, territórios russos, com maioria ou grande proporção de russos étnicos e predominância do idioma russo (ver artigo na edição 577 do Brasília Capital).
Em suma, o que vai ser o futuro da Ucrânia nunca esteve tão associado ao seu passado. Gostemos ou não, a “Realpolitik” já deu mostras de que a Rússia não aceitará ter mísseis norte-americanos (Otan) em suas fronteiras, assim como os EUA, há 60 anos, não aceitaram ter mísseis russos (Pacto de Varsóvia) em Cuba.
O fato é que, possivelmente, tenhamos a criação de três “Estados-tampões” no atual território ucraniano (que poderão virar dois ou mesmo um único): um, agrupando, grosso modo, a antiga região russa de Sloboda Ucrânia, com 55,3 mil km² e 3,7 milhões de habitantes; outro envolvendo o Donbass (Luhansk e Donetsk), com 53,2 mil km² e 6,2 milhões de habitantes; e um terceiro nos antigos territórios russos da “Nova Rússia” (Zaporizhian, Kherson e Mykolaiv) e do “Yedisan” (Odessa), acrescido de Dnipropetrovsky, com 145,5 mil km² e 9,3 milhões de habitantes. A Crimeia, que fazia parte da “Nova Rússia” já foi reincorporada à República da Rússia.
A Ucrânia “pró ocidente” ficaria resumida a seu território original, dos dois “Estados Cossacos” (Zaporozhian Sich e Hetmanato Cossaco) constituídos no século XVII (212,1 mil Km², com 13,2 milhões de habitantes), juntamente com os territórios ocidentais incorporados no período da 2ª Guerra Mundial (110,6 mil Km² e 9,2 milhões de habitantes), totalizando 322,7 mil Km² e 22,4 milhões de habitantes.
Mudanças territoriais têm sido frequentes e expressivas na Europa nas últimas décadas. Países como União Soviética e Iugoslávia desapareceram; outros, como Alemanha e Polônia, tiveram suas fronteiras redesenhadas. A divisão da Ucrânia é apenas uma possibilidade, uma especulação, que só o desfecho do conflito dirá se ocorrerá ou não.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia