Há exatos 100 anos, em 21 de janeiro de 1924, morria, aos 53 anos, na recém-criada União Soviética, o líder do Partido Comunista Russo Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido pelo codinome Lênin. Idolatrado por uns, odiado por outros, Lênin foi, inegavelmente, a pessoa que teve maior influência nos acontecimentos no século XX.
Nascido em 1870, apenas nove após o fim da servidão na Rússia, o panorama neste final do século XIX era de franco progresso do sistema capitalista, já iniciando sua fase de oligopolização e cartelização e de brutal ofensiva imperialista sobre os povos de todo o mundo. Enquanto a imensa maioria da classe trabalhadora vivia em condições miseráveis, a burguesia não se acanhava em ostentar sua vida suntuosa.
Um divisor de águas na vida de Lênin foi a condenação à morte, em 1887, de seu irmão Alexander “Sacha”, quatro anos mais velho, pela tentativa de assassinar o czar Alexandre III. Já se apropriando da teoria marxista, Lenin repudiou o “terrorismo” como método de luta para resistir ao regime de terror czarista, que arregimentou milhares de jovens russos, e, depois de se graduar em Direito, foi para a então capital, São Petersburgo,em 1893, e logo se tornou figura de proa na organização do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), fundado em março de 1898.
Alguns meses antes, foi preso e exilado na Sibéria, numa localidade às margens do imponente rio Lena, de onde tirou seu codinome. Estudioso das obras de Marx e Engels, Lênin se convenceu de que chegara a hora de superar o sistema capitalista de produção em todo o planeta, substituindo-o pelo sistema socialista, e que as circunstâncias políticas permitiam que tal processo poderia se iniciar pela atrasada Rússia, não obstante Marx e Engels preconizarem que tal processo se iniciaria pelos países industrialmente mais adiantados, notadamente a Alemanha.
Em 1903, capitaneou o “racha” no POSDR, formando a ala majoritária (bolchevique), entendendo que a burguesia russa, por inúmeras razões, não faria a revolução democrática e que a tarefa do partido era organizar a classe trabalhadora, não só para derrubar o regime czarista, como para estabelecer um governo operário, em aliança com os camponeses.
Em janeiro de 1905, após o fatídico domingo sangrento, quando a polícia czarista abriu fogo contra uma manifestação de 150 mil trabalhadores na capital, matando entre 2 mil e 4 mil pessoas, eclodiu a primeira Revolução Russa, ocasião em que foi formado o primeiro soviete (conselho), comandado por Leon Trotsky.
A monarquia concedeu a formação da primeira Duma (parlamento), mas logo recobrou seu regime autocrático e policialesco, e entre 1906 e 1913 houve relativo retrocesso na luta revolucionária, época em que, no exílio, Lênin se distanciou definitivamente da ala menchevique e se dedicou a consolidar os bolcheviques como partido para organizar a revolução.
A eclosão da 1ª Guerra Mundial em julho de 1914 gerou uma ruptura definitiva no movimento operário, com a maioria dos partidos que constituíam a 2ª Internacional Socialista apoiando suas respectivas burguesias. Os bolcheviques, caracterizando a guerra como um confronto interimperialista, romperam com os partidos conciliadores e participaram das Conferências de Zimmerwald e Kienthal, na Suíça, respectivamente, em 1915 e 1916, que tinham como propósito buscar transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária.
A Rússia, alinhada com o Império Britânico e a França contra os Impérios Alemão e Austro-húngaro, teve suas fronteiras invadidas pelas potências centrais e sua situação militar ficou insustentável na virada de 1916 para 1917. Ao mesmo tempo, se deteriorava a condição de vida dos trabalhadores nas cidades, gerando greves violentamente reprimidas, e crescia a luta das massas camponesas pelo acesso à terra.
O imenso Império Russo fervilhava com seus 170 milhões de habitantes, 70% camponeses miseráveis. Em fevereiro de 1917 eclodiu a 2ª Revolução Russa, fruto de nova repressão brutal às manifestações operárias na capital, dessa vez resultando na queda do czar Nicolau II.
Assumiu o poder um governo provisório, de colaboração de classes, compreendendo partidos da burguesia e dois partidos de centro-esquerda (Mencheviques e Socialistas Revolucionários), que teve que dividir o poder de fato com o Soviete de Operários e Soldados de São Petersburgo, comandado por esses dois partidos. Os bolcheviques eram minoria no soviete.
Ocorre que ambos se isentavam em atender as aspirações das massas em ebulição, que eram o fim da guerra fraticida, o fornecimento de alimentos mais baratos nas cidades e o acesso à terra pelos camponeses. É neste momento que Lênin chega do exílio a São Petersburgo com suas famosas Teses de Abril, lançando as palavras de ordem “Paz, Pão e Terra”! e“Todo o Poder aos Sovietes”!
Os bolcheviques, ainda minoritários nos sovietes, agora espalhados por toda a Rússia, vão ganhando terreno, superaram a perseguição movida pelo governo provisório de Kerensky e a tentativa de golpe do general Kornilov, e conseguiram maioria nos sovietes da capital, de Moscou e de várias cidades russas ao longo dos meses de setembro e outubro de 1917.
Lênin então passou a defender que estavam amadurecidas as condições para a derrubada do governo provisório. Mas a Revolução corria perigo, com Kerensky trazendo tropas supostamente leais ao governo para esmagar o soviete da capital.
A resposta dos bolcheviques foi categórica, constituindo, sob o comando de Leon Trotsky e Antonov Ovseenko, o Comitê Militar Revolucionário (CMR) do Soviete de Petrogrado, para defender a revolução. As tropas que chegaram a São Petersburgo aderiram aos revolucionários e colocaram-se sob o comando do CMR.
Em 25 de outubro (7 de novembro pelo calendário gregoriano), o 2º Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, sob ampla maioria bolchevique, depôs o governo provisório, prendeu seus membros, ocupou os órgãos públicos e instaurou o regime soviético (Conselhos dos Operários, Camponeses e Soldados), delegando o poder executivo ao Sovnarkom(Conselho do Comissariado do Povo), sob a presidência de Lênin. Num segundo momento, os socialistas revolucionários de esquerda, passaram a integrar o novo governo.
Os primeiros decretos do Sovnarkom tiveram amplo apoio popular: estatização dos bancos; colocação das fábricas sob a gestão dos trabalhadores; expropriação da aristocracia rural e distribuição de suas terras aos camponeses e negociações com Alemanha e Áustria para firmar a paz. Ademais, concedeu a independência às nações conquistadas pelo regime czarista (Polônia e Finlândia) e autonomia às demais regiões ocupadas por povos não russos.
Mas as dificuldades do novo governo logo se avolumariam, pois, a partir de maio de 1918, teve que enfrentar uma guerra civil, defrontando-se com os chamados “exércitos brancos” (comandados por ex-generais czaristas, financiados pela burguesia industrial e financeira e a aristocracia rural) e com a invasão do país por exércitos de 16 países capitalistas (França, Grã-Bretanha, Itália, Alemanha, Japão, EUA e outros dez), cujo objetivo era matar no nascedouro o primeiro Estado Socialista.
Para enfrentar tamanha ameaça, o novo governo, que havia praticamente dissolvido o exército, teve que rapidamente formar o Exército Vermelho, sob o comando de Leon Trotsky, que do zero no início de 1918, cresceu para 5,5 milhões de combatentes em 1922, expulsando os exércitos invasores e aniquilando os exércitos brancos.
Nesse período de extremas dificuldades, foi instituído por Lênin o chamado “Comunismo de Guerra”, com o objetivo de garantir as condições para a vitória militar, mas que desorganizou ainda mais a estrutura produtiva do país.
Ao tempo em que travava a guerra contra a reação burguesa e o imperialismo, Lênin estava ciente de que o sucesso da Revolução Socialista na Rússia dependia do avanço da revolução proletária em escala mundial. Após a vergonhosa capitulação da social-democracia europeia às suas respectivas burguesias no curso da 1ª Guerra Mundial, Lênin pregou o abandono da 2ª Internacional e articulou a fundação da Internacional Comunista (3ª Internacional) em março de 1919, com o propósito de organizar o proletariado para realizar a revolução socialista nos demais países europeus.
Mas a ação revolucionária do proletariado foi derrotada nos diversos países (Alemanha, Itália, Finlândia, Hungria, Bulgária, Áustria etc), levando ao isolamento do Estado Socialista Russo. Ao fim da Guerra Civil o país encontrava-se destroçado, pois, além do atraso secular gerado pela ditadura czarista, vinha de 8 anos de conflitos (1ª Guerra Mundial, ebulição revolucionária de 1917 e 4 anos de guerra civil).
Em 1922 a colheita de grãos foi apenas 37% da obtida em 1913; a indústria pesada havia caído 80%; a produção de carvão caíra 75%; 70% das ferrovias e locomotivas estavam destruídas ou danificadas. E nada menos que 15 milhões de russos, entre militares e civis, haviam perecido ao longo desses oito anos, inclusive em função da fome e epidemias. E para infelicidade do projeto revolucionário, o esfacelamento do país se refletia numa enorme redução do poder de fogo da classe operária.
No final de 1921 o contingente operário estava reduzido à metade dos 3 milhões existentes em 1917, em face do recrutamento de centenas de milhares para integrar o Exército Vermelho. Com a vitória militar delineada, urgia a recuperação econômica do país e, já no fim de 1921, Lênin defendeu o fim do “Comunismo de Guerra” e a implementação da Nova Política Econômica (NEP), com a autorização de empresas privadas, a liberdade de comércio interno e até atração de capitais externos como meio de incrementar a produção industrial e o suprimento de bens. Tratava-se da sobrevivência da URSS.
Em dezembro de 1922 foi constituída a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), naquele momento integrada por quatro repúblicas (Rússia, Bielorrússia, Ucrânia e Transcaucásia), posteriormente ampliada para quinze.
Mas, ao tempo que o proletariado definhava, crescia o número de funcionários do Estado. Lênin, no XI Congresso do Partido Bolchevique, em março de 1922, alertou para a crescente burocratização do Estado, mas cometeu o erro crasso de indicar Stálin para o cargo de Secretário-Geral do Partido.
Logo percebeu que Stalin transformou a SG num aparato de ascensão da burocracia e iniciou uma batalha contra a burocratização. Mas,justamente neste período crítico, em dezembro de 1922, Lênin sofreu um derrame que limitou enormemente sua atuação política. Em seu “Testamento Político” de janeiro de 1923, sugeriu a remoção de Stalin do cargo de SG do PCR, mas tal proposição foi desconsiderada no XII Congresso, em abril de 1923.
Seguiu-se, então, um período de progressivo desmantelamento das organizações operárias e a atrofia e perda de poder decisório dos sovietes. Em outubro de 1923 é formada por Trotsky e outros membros do PCR a Oposição de Esquerda, que é violentamente caluniada e derrotada por Stalin e seus seguidores. Em 21 de janeiro de 1924 Lênin morreu, e logo Stalin se apropriou de seu legado político.
A Rússia sem Lenin
Após a morte de Lênin, intensificou-se a disputa política na URSS entre a facção majoritária, organizada em torno de Stalin, e a minoria, organizada na Oposição de Esquerda capitaneada por Trotsky e outras facções menores. A prevalência de Stalin significou a vitória da imensa camada social de burocratas, cuja consolidação implicava num processo de destruição da democracia operária e de degeneração do Estado Socialista.
No XIV Congresso do agora Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1925, mais à vontade sem a sombra de Lênin, Stalin e Bukharin defenderam e fizeram aprovar a teoria do “Socialismo em um único país”, contrariando a teoria marxista, que entendia que o sucesso da revolução socialista só poderia se dar em escala mundial.
A partir de então, a Internacional Comunista abandonou a organização da luta revolucionária nos diversos países e passou literalmente a “organizar” derrotas do proletariado, como nos casos da China, em 1927, da Alemanha, em 1930/33, e da Espanha em 1936/39.
Stalin gradativamente foi consolidando seu poder como representante maior de uma numerosa casta burocrática que se colocava acima da classe trabalhadora, falando em seu nome. No XVII Congresso do PCUS, em fevereiro de 1934, com a oposição já esfacelada, emergiu a figura de Serguei Kirov, que não desafiava Stalin, mas o superava em popularidade na base do PCUS.
Em dezembro do mesmo ano, Stalin “encomendou” à polícia política NKVD (futura KGB) o assassinato de Kirov, buscando dois objetivos: se livrar de um possível concorrente e, ao imputar a culpa à Oposição de Esquerda, ter o pretexto para iniciar um processo de perseguição e aniquilação definitiva de toda oposição a seu governo.
A partir de então, milhares de oposicionistas são presos, e em agosto de 1936 tiveram início os famosos Processos de Moscou, que transcorreram até 1938. Dos 134 membros do CC do PCUS eleitos em 1934, nada menos que 98 foram fuzilados, assim como 1.108 dos 1.966 delegados presentes àquele congresso.
E ainda mais chocante, o CC do PCR que comandou a Revolução em 1917 tinha 21 membros, e em 1936 nove já tinham falecido, restando 12 da chamada “velha guarda bolchevique”. Pois desses 12 sobreviventes, nada menos que 8 serão fuzilados a mando de Stalin entre 1936 e 1939, e Trotsky será morto por um agente da NKVD no México em 1940. Sobreviveram, além de Stalin, apenas dois, Kolontai e Muranov.
O expurgo stalinista atingiu também fortemente o Exército Vermelho: 706 dos 2.475 generais e oficiais de alta patente serão fuzilados, além de outros 30 mil militares de menor patente, o que comprometeu violentamente a capacidade de defesa da URSS quando de sua invasão pela Alemanha nazista em junho de 1941. Situação agravada pelo pacto de não agressão germano-soviético firmado por Stalin com Hitler em 1939, e sua recusa em admitir a possibilidade de invasão da URSS pelo exército nazista.
Após o desastre inicial, com a Wehrmacht penetrando fortemente em território soviético e matando milhões de soldados e civis russos, prevaleceu a determinação do povo russo em barrar o avanço nazista. O resultado, todos sabem, foi a derrota acachapante dos nazistas. Interessado em aumentar seu poderio, Stalin negociou com os imperialismos norte-americano e inglês, nas conferências de Yalta e Potsdam, a divisão da Europa em áreas de influência.
Nos países do leste europeu, ocupados pelos nazistas e desalojados pelo Exército Vermelho (Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Bulgária e o leste da Alemanha) foram criados, de cima para baixo, estados socialistas. Em compensação, Stalin determinou que na Itália, França e Grécia, os partidos comunistas abdicassem da revolução social e colaborassem para a recuperação dos estados capitalistas.
Iniciou-se a chamada Guerra Fria, que entremeava a cooperação e a coexistência pacífica entre a URSS e os países imperialistas (como na criação do Estado de Israel) com conflitos localizados pela disputa de influência em algumas regiões (caso da Coreia).
Em 1953 Stalin morreu, legando um estado operário absolutamente degenerado. Três anos depois, seu sucessor e antigo aliado Nikita Krushevfez a denúncia dos crimes stalinistas no XX Congresso do PCUS, mas manteve intocados os privilégios da casta burocrática e o estado policialesco.
No plano internacional, manteve os partidos comunistas mundo afora a serviço da colaboração de classes (como o PCB no Brasil) e reprimiu violentamente qualquer tentativa de democratização dos regimes stalinistas implantados no leste europeu (casos da Hungria, Polônia e Tchecoslováquia).
Não obstante, a força da propriedade social dos meios de produção e da economia planificada impulsionavam a URSS para frente, fazendo-a se recuperar da destruição provocada pela 2ª Guerra Mundial. Em diversos campos a URSS avança de forma espetacular. O país se consolida como grande potência industrial, o nível educacional da população ascende aos padrões das potências ocidentais, o desenvolvimento tecnológico é enorme e o país colocou o primeiro o homem no espaço.
Mas a crescente burocratização impunha limites cada vez maiores a uma efetiva melhoria da qualidade de vida dos soviéticos. Nas décadas de 1960 e 1970. os choques entre a propriedade social dos meios de produção e os privilégios auferidos pela casta burocrática foram se acentuando, o descontentamento da população soviética se tornou crescente e a burocracia dirigente já não conseguia ter o controle sobre o país como outrora. As dificuldades econômicas se avolumavam, e o país, assim como seus satélites, teve que recorrer a um crescente endividamento externo para amenizar a situação.
Em 1985, Mikail Gorbachev assumiu o comando da URSS com o propósito de realizar reformas políticas (Glasnost) e econômicas (Perestroika). Quando assumiu, 98% da economia soviética era estatal e apenas 2%, privada. O PIB soviético, que vinha tendo crescimentos pífios desde meados da década de 1970, passou a ter crescimento negativo.
A degeneração do estado socialista era absoluta e havia o mais completo descasamento entre a massa trabalhadora e a casta burocrática, oportunidade em que esta enxerga o momento propício para dar o golpe de morte na propriedade social dos meios de produção.
As reformas, ainda tímidas, propunham conceder autonomia de decisão aos gerentes de empresas estatais, a introdução de mecanismos de mercado na economia e permitir atividades econômicas privadas individuais e de cooperativas. Em 1986 é aprovada lei sobre a atividade individual e em 1987 nova lei sobre empresa estatal. Os planos centrais do Gosplan não eram mais obrigatórios, e somente parte da produção seria comprada pelo Estado, com o restante podendo ser vendido no comércio entre empresas. Era a liquidação da economia planificada.
Na autonomia concedida às empresas estatais, estava a concessão da autogestão dos trabalhadores. Os conselhos de trabalhadores eleitos eram os responsáveis pela disciplina, determinação dos níveis salariais e distribuição dos lucros. As empresas buscavam manter seu quadro de funcionários, pois os gerentes dependiam do apoio dos funcionários para se manterem no cargo. A legitimidade dos gerentes dependia de sua habilidade em preservar os empregos e salários.
Em 1988 é aprovada a lei sobre as cooperativas. Elas podiam funcionar como empresas privadas, não obedecendo ao sistema de planejamento. Uma pessoa podia ser membro de várias cooperativas, inaugurando uma nova classe de homens de negócios.
O objetivo declarado era legalizar a atividade de pessoas ou grupos de pessoas que praticavam certos serviços (reparos residenciais, encanadores, eletricistas, construção civil etc). Mas o objetivo oculto ia muito além, pois as cooperativas podiam prestar serviços de crédito, participar no comércio exterior, formar joint ventures com empresas estrangeiras e contratar funcionários não membros da cooperativa (introdução do trabalho assalariado).
Também deveriam ser de pequena escala, mas algumas cooperativas se tornaram grandes empresas. As maiores foram criadas pelos gerentes das estatais, que associavam vários de seus funcionários. Compravam os bens produzidos pelas empresas estatais (a preços tabelados), faziam alguma maquiagem e os vendiam a preços livres, inclusive no exterior, em dólares, podendo reter ganhos de exportação fora da URSS. Em dezembro de 1989, um mês após a derrubada do Muro de Berlim, já são 3 milhões de cooperativados na União Soviética.
Em maio de 1990, Yeltsin é eleito presidente (chefe do soviete supremo) da RSS da Rússia, sai do PCUS e em setembro do mesmo ano lança o Plano dos 500 dias, com o objetivo de transformar a Rússia numa economia de mercado em 17 meses, privatizando 70% das empresas estatais.
Em junho de 1991, Yeltsin foi eleito presidente da Federação Russa e em dezembro de 1991 ocorreu a dissolução da URSS. Os cooperativados já ultrapassam os 6,2 milhões, mas 90% da economia ainda estava sob controle do Estado, contra 10% sob controle privado.
Mas o golpe de misericórdia na propriedade social estava ainda por vir. Em janeiro de 1992 iniciou-se o plano de transição para a Rússia, chamado tratamento de choque. Sob a coordenação do primeiro-ministro YegorGaidar, assessorado por economistas ortodoxos ocidentais, estabeleceu 4 eixos: a) liberação total dos preços; b) abertura comercial e câmbio flutuante; c) maior restrição orçamentária/racionamento do crédito; d) privatização das empresas estatais/introdução de um sistema de direitos de propriedade.
Em outubro 1992 foi constituída uma agência governamental para a privatização (GKI), que fez a introdução dos “vouchers”, papéis que eram vendidos por preço simbólico a todos os russos para participarem de leilões das empresas estatais, sendo que a maior parte foi transferida aos próprios funcionários.
Mas, com a liberação dos preços e a consequente queda dos salários reais, muitos funcionários, para sobreviver, não tiveram outra alternativa que não venderem seus vouchers antes dos leilões por preços baixos para quem tinha dinheiro para comprá-los, justamente os gerentes das empresas estatais enriquecidos nas cooperativas, além dos fundos de investimento e instituições financeiras privadas.
Concomitantemente, ocorreu a privatização da terra, com os kolkhozese sovkhozes transformados em sociedades por ações, dotadas de capital e direito de uso das terras. Em 1994, as atividades privadas já respondiam por 47% da economia russa.
Em 1995 é introduzido novo esquema de privatização, os chamados empréstimos contra ações. Os fundos de investimento e os bancos emprestavam dinheiro ao Estado por dois anos em troca de ações das maiores empresas estatais exportadoras de comodities. Como o Estado não quitou os empréstimos, as ações dessas empresas altamente lucrativas passaram para as mãos privadas.
Dessa forma, as atividades privadas ascenderam a 70% da economia da Rússia em 1997, com apenas 30% sob controle do Estado. Entre 1985 e 1998 a economia russa passou por uma enorme depressão. Nesses 14 anos houve um decréscimo acumulado do PIB da ordem de 30%, período em que a casta burocrática do PCUS e do Estado Soviético se transformou numa nova classe capitalista, se apropriando, “na mão grande”, do que era propriedade social de 280 milhões de soviéticos.
Em julho de 1998 o burocrata Vladimir Putin, ex-agente da KGB, assumiu a chefia do Serviço Federal de Segurança (sucessor da KGB), e em agosto de 1999 foi nomeado primeiro-ministro por Yeltsin. Em dezembro ocorreu a renúncia de Yeltsin, e Putin assumiu a presidência interinamente, sendo eleito em maio de 2000 presidente da Federação Russa.
O temor de Lênin de que a Revolução Russa pudesse sucumbir começou a se consumar 60 anos após sua morte. A propriedade social dos meios de produção foi substituída pela propriedade privada; os burocratas do PCUS e os ex-gerentes das empresas estatais tornaram-se os novos donos dessas empresas.
Putin, no poder de fato desde 1999, chefe dos oligarcas, busca, com sua reeleição em 2024, não só alcançar os mesmos 30 anos de Stalin no comando da Rússia, mas dele aproxima-se ideologicamente, adotando, para sua legitimação interna, a bandeira da Grande Rússia (Guerra com a Ucrânia), do nacionalismo e defesa da pátria russa (Rússia versus EUA/OTAN); exaltando as figuras do czar Pedro, o Grande, e da czarina Catarina II; e escorando seu poder político em maciços investimentos na área militar.
Passados 100 anos desde 1924, o sistema capitalista lançou seus tentáculos sobre todos os quadrantes do planeta. Este é destruído um bocadinho a cada dia pela desmensurada busca de maximização dos lucros. A concentração da renda e da riqueza, como demonstrou Thomas Piketty, alcançou proporções nunca vistas na história da humanidade; e a miséria de centenas de milhões convive com a opulência de um grupelho de bilionários.
No centenário da morte de Lênin, as motivações que embalaram os sonhos de milhões de proletários russos por uma sociedade justa e solidária estão mais do que presentes. O que falta é direção política.