A guerra entre Rússia e Ucrânia completa dois anos neste 24 de fevereiro, tendo como saldo dezenas de milhares de mortos e feridos em ambos os lados e um forte impacto negativo nas atividades econômicas de diversos países, principalmente europeus. Trata-se de uma típica guerra em que nenhum dos contendores tem razão: a Rússia, sob o comando de Putin, chefe supremo da oligarquia mafiosa russa, no papel de potência agressora, e a Ucrânia, sob o comando de Zelensky, vassalo do imperialismo norte-americano, no papel de marionete provocador.
Dois anos após o início do conflito, o que temos é o exército russo ocupando cerca de 30% do território ucraniano, os oblasts (estados) do Leste e do Sul, habitados por expressivo percentual de ucranianos de etnia russa e majoritariamente falantes do idioma russo. E dificilmente se chegará a um acordo retroagindo à situação de fevereiro de 2022. Antes de tratarmos desta questão, é importante entendermos a histórica e umbilical relação russo-ucraniana e como se deu o rompimento.
Desde meados do século V DC, tribos eslavas se dispersaram ao longo da porção oriental da chamada “Grande Planície Europeia”. Logo constituíram-se em três grupamentos linguísticos: eslavos meridionais (Balcãs), ocidentais (Polônia, Boêmia e Morávia) e orientais (Rússia, Bielo Rússia e Ucrânia). Um pequeno território, no litoral leste do mar Báltico, era habitado por tribos bálticas.
Algumas dessas tribos eslavas orientais, distribuídas ao longo dos grandes rios da planície (Dnieper, Don e Dnister), estabeleceram vilarejos que utilizavam as vias fluviais para comercializar com comerciantes nórdicos (suecos). Logo os nórdicos estenderam essas vias de comércio, através dos rios Volkhov, Ilman e Dnieper, ligando o mar Báltico ao mar Negro e alcançando a grande Constantinopla, sede do Império Bizantino, e a não menos importante Bagdá, capital do Império Abássida.
Três centros de comércio se destacavam na imensa planície: Novgorod, no Norte; Smolensk, no alto Dnieper, no centro; e Kiev, no médio/baixo Dnieper, no Sul. Em 862, o príncipe nórdico Rurik assumiu o comando de Novgorod. Após sua morte, Oleg assumiu, em 879, a regência do Reino de Novogárdia (capital Novgorod) e desceu o Dnieper, conquistando Smolenske Kiev, transferindo a capital de Novogorod para esta última e fundando, em 882, a chamada Rus de Kiev. A partir de então foram formados e/ou consolidados diversos principados russos em toda a grande planície. No século XI destacavam-se oito: quatro no atual território russo (Novogárdia, Smolensk, Chernigov e Rostov-Susdália); um na atual Bielo-Rússia (Polócia), e três na atual Ucrânia (Kiev, Volínia e Pereaslávia).
Em 1212, Novogárdia repeliu uma tentativa de invasão dos alemães (Ordem Teutônica), mas em 1237 toda a região sucumbiu à invasão mongol, que conquistou toda a imensa planície. Entre 1240 e 1450 os mongóis da Horda Dourada dominaram a região, cobrando pesados tributos dos principados, frequentemente saqueando suas cidades e aldeias e escravizando seus habitantes.
A resistência aos mongóis se deu, sobretudo, pelo Grão-Ducado da Lituânia, formado por tribos bálticas em 1230. Entre 1260 e 1430, conquistaram aos mongóis praticamente todo o território anteriormente ocupado pelos oito principados russos. Já em 1385 os lituanos se associaram Reino da Polônia e compartilharam seus domínios sobre os territórios russos. Milhares de nobres, principalmente polacos, deslocaram-se para leste e ocuparam as melhores terras, colocando os camponeses russos sob servidão. O domínio lituano-polaco alcançou o ápice com a formação da chamada República das Duas Nações (Comunidade Polaco-Lituana) em 1569.
Um pouco antes (1480), o Grão Ducado de Moscou libertara-se do jugo mongol e assumira a conquista das terras a Leste, na bacia do Volga, iniciando a disputa com os lituanos e polacos sobre os territórios russos por esses ocupados. Ao longo do século XVI conquistou aos lituanos as regiões de Smolensk, Chernigov, Briansk, Gomel, Belgorod, Kursk e Orel. Da extinta Horda Dourada, formou-se, ao sul, na bacia do mar Negro, o Canatoda Crimeia, governado pelos tártaros, tutelado pelo poderoso Império Otomano.
É a partir dessa situação, em meados do século XVII, que adveio a aparição da Ucrânia, termo relacionado precisamente à “região de fronteira”, porque é disso que se tratava, um território que abrangia o médio Dnieper, habitado majoritariamente por camponeses eslavos orientais de religião ortodoxa (mas também poloneses, lituanos e até tártaros) que fugiam da servidão ou escravidão imposta pelos nobres senhores de terras polacos, lituanos e russos e migraram para esta região, os chamados “Campos Selvagens”, espécie de terra de ninguém. Uma região de fronteira em disputa entre três potências, tendo a Oeste a República Polaco-Lituana, já sob hegemonia polonesa (religião católica); a Leste o Grão Ducado de Moscou (agora Czarado da Rússia, de religião ortodoxa), e ao sul o Canato da Criméia (religião islâmica).
Para se defender dos constantes ataques dos tártaros, os eslavos dessa região organizaram sua defesa constituindo agrupamentos militares denominados “cossacos”. Deve-se esclarecer que cossacos não são um povo, como muito frequentemente e erroneamente é mencionado. Outros agrupamentos cossacos surgiram com o mesmo propósito militar em outras regiões da Rússia, como os cossacos do Don, os cossacos do Kuban e os cossacos da Sibéria. Cossaco significa “homem livre” e assim eram nessas vastas estepes, formando uma espécie de federação de comunidades independentes, sem um governo constituído, mas todas dotadas de um forte destacamento militar.
Em 1648 eclodiu uma violenta revolta dos cossacos do Dnieper contra os nobres poloneses. Obtiveram o apoio da Rússia, que tinham neles aliados importantes na contenção dos tártaros da Crimeia, e permitiram que estruturassem o chamado Hetmanato Cossaco, nas duas margens do médio Dnieper: na direita (ocidental) em terras do Reino da Polônia (cerca de 139 mil km²) e na margem esquerda (oriental) em terras sob controle russo (cerca de 97 mil km²). Este território de 236 mil km² é a área que deve ser considerada como originalmente constituinte da Ucrânia, embora não reconhecida como Estado independente.
Na década de 1650 a Rússia tomou aos tártaros a região de Kharkhov(Sloboda) e o baixo Don (atual Donbass) e entre 1740 e 1783, especialmente na Guerra Russo-Turca de 1768/74, conquistou todo o restante do território tártaro (estepes na margem norte do mar Negro), pondo fim ao Canato da Crimeia, numa extensão territorial de 244 mil km². Desde então até início do século XX todo o território da atual Ucrânia (exceto sua porção ocidental, compreendendo a Volínia, Galícia e Podólia) fez parte do Império Russo.
Com a queda da monarquia na Revolução Russa de 1917, ganhou fôlego o reconhecimento da Ucrânia como uma das repúblicas constituintes da União Soviética. Numa decisão fortemente influenciada por Lênin, toda a região russa da bacia do Don e da margem setentrional do mar Negro, exceto a península da Crimeia (217 mil km²), ambas com expressivos contingentes ucranianos, foi cedida à recém-criada República Socialista Soviética da Ucrânia. Após a 2ª Guerra Mundial, por obra de Stálin, a Ucrânia teve incorporado a seu território 124 mil km² que pertenciam à Polônia, Eslováquia e Romênia. Por fim, em 1954, Kruschev “doou” a Península da Crimeia/Sebastopol (27 mil km²) da Rússia para a Ucrânia.
Em resumo, do atual território ucraniano (603 mil km²), apenas 39% (236 mil km²) compõem o que poderia ser classificado como território originalmente ucraniano. Os demais 61% (367 mil km²) foram incorporados posteriormente, abrangendo diversos povos (não apenas russos), o que tem suscitado frequentes conflitos. É o caso dos sete oblasts do leste e sul ucraniano, que formavam a chamada “Nova Rússia” e até 1921 faziam parte do território russo (Lugansk, Donetsk, Zaporizhia, Kerson, Mycolaiv, Odessa e Crimeia).
Como já mencionado, há uma expressiva população de etnia russa, que fala majoritariamente o idioma russo e que estava sendo perseguida pelosgovernos direitistas que assumiram o governo ucraniano após o golpe da famigerada “Revolução Laranja” em 2004/05, que impediu a posse do presidente eleito, Viktor Yanukovych, e do golpe da Euromaidan (Praça Maidan), em 2014, que depôs Viktor Yanukovich, democraticamente eleito em 2010.
O quadro foi agravado pela decisão do governo fantoche da Ucrânia de torná-la membro da OTAN, numa clara provocação à Rússia, uma vez que mísseis norte-americanos poderiam ser apontados para cidades russas como Belgorod e Rostov, a escassos 50 Km da fronteira ucraniana (por muito menos, contra a instalação de mísseis russos em Cuba, a 330 Km da Flórida, os EUA quase iniciaram a 3ª Guerra Mundial em 1962). Para a população da “Nova Rússia”, a secessão tornou-se a única alternativa. Se esta região vai se constituir em uma nova nação independente ou vai ser integrada ao território russo, somente o resultado final da presente guerra vai definir. Mas dificilmente voltará a ser parte da República da Ucrânia.