Júlio Miragaya (*)
A realização da COP 30 em Belém tem um significado especial: pode reforçar nossa condição como um dos países líderes na cruzada mundial contra a predação ambiental promovida pela ganância capitalista, com consequências catastróficas para o clima do planeta. Mas se o Brasil quer efetivamente desempenhar essa liderança, não pode dar margem para o velho provérbio “Casa de ferreiro, espeto de pau”.
Não obstante a polêmica acerca da exploração de petróleo na Margem Equatorial, o governo Lula vem buscando atender a agenda ambiental, notadamente a redução do desmatamento na Amazônia, embora as pressões sejam pesadas, pois é do conhecimento geral que o principal fator de desmatamento na região tem sido a pecuária bovina, uma das “meninas dos olhos” da numerosa bancada ruralista.
Façamos uma retrospectiva. A partir da década de 1970, ocorreu nas regiões Sul e Sudeste uma rápida conversão das áreas destinadas a pastagens para o cultivo de soja, milho e cana-de-açúcar. Deslocadas inicialmente para o Centro-Oeste, as pastagens também aí cederam terreno para tal conversão, e a Amazônia Legal se tornou um espaço privilegiado para a expansão da pecuária bovina.
Os dados são categóricos: em 1970, o rebanho bovino na Amazônia era de 7,2 milhões de cabeças, correspondentes a 9,2% do total nacional de 78,6 milhões. Vinte anos depois, em 1990, o efetivo bovino na Amazônia quadruplicou para 26,6 milhões, 18,1% do total de 147,1 milhões. Mais vinte anos se passaram e em 2010 o rebanho na Amazônia triplicou para 77,8 milhões, 37,2% do rebanho nacional de 209,5 milhões de cabeças.
Em 2023, num cenário de disparada das exportações de carne bovina, o rebanho brasileiro cresceu para 238,6 milhões, 45% dos quais (107,2 milhões) na Amazônia. De 1990 a 2023, o efetivo nacional aumentou em 91,5 milhões de cabeças e 88% (80,6 milhões) desse aumento se deu na Amazônia. De 2010 a 2023, a Amazônia respondeu por 100% do aumento de 29,1 milhões de cabeças no País.
Ainda mais preocupante é onde está ocorrendo a expansão das pastagens na Amazônia. Se nos 53 anos de 1970 a 2023 o rebanho bovino cresceu 204% no Brasil e 1.393% na Amazônia Legal, na região do “Arco do Desmatamento” (do leste do Acre até o oeste do Maranhão, passando por Rondônia, sul do Amazonas, norte do Mato Grosso, centro e sul do Pará e oeste do Tocantins) o crescimento foi de inacreditáveis 4.123%, concentrando a sub-região 76,2% do gado amazônico.
Paralelamente ao aumento do rebanho bovino ocorreu a expansão do desmatamento. Em 1970, a área desflorestada era de 220 mil Km². Ao ritmo de 9,6 mil Km² desmatados anualmente nas décadas de 1970 e 1980, chegou a 413 mil Km² em 1990. Desmatando 17,5 milKkm²/ano no período 1991/2002, chegou a 623 mil Km² desmatados em 2002. De 2002 a 2010 o desmatamento caiu para 15,5 milKkm²/ano, despencando para 5,6 mil Km²/ano de 2011 a 2015, com a área desmatada de 775 mil Km² em 2015.
De 2016 a 2023, com o desmonte dos órgãos de controle ambiental e o abandono das políticas públicas, o ritmo voltou a aumentar para 9,6 mil Km²/ano, voltando a refluir em 2024/25 para 5,5 mil Km²/ano. Hoje, são 863 mil Km² de área desmatada na Amazônia Legal, quase 300% acima da existente em 1970. E a maior parte dessa área foi convertida em pastagens ou se tornaram pastagens degradadas.
E chegamos ao X da questão. Das 11 mesorregiões que compõem o Arco do Desmatamento, a que teve menor expansão do rebanho foi “Sul Amazonense”, e que, não obstante sua enorme extensão territorial de 476,1 mil Km² (47,6 milhões de hectares), abrigava em 2023 apenas 1,83 milhão de cabeças de gado, correspondente a 1,71% do rebanho amazônico, ou 2,24% do efetivo existente no “Arco do Desmatamento”.
Mas o simples anúncio do possível licenciamento para a pavimentação do chamado “trecho do meio” da BR-319 – os 400 Km que faltam ser pavimentados do total de 885 Km que separam Manaus de Porto Velho – levou a uma corrida de grileiros, madeireiros e pecuaristas para a região. A pressão vem de três frentes: Noroeste do Mato Grosso (de Colniza e Aripuanã sobre Apuí e Manicoré), Norte de Rondônia (de Porto Velho e Machadinho sobre Humaitá) e Leste do Acre (de Rio Branco e Porto Acre sobre Boca do Acre e Lábrea).
Se é legítima a demanda dos amazonenses por uma ligação rodoviária com o restante do país, também é legítima a preocupação de se evitar que aconteça com o vasto sul amazonense a devastação que ocorreu em outras sub-regiões amazônicas. A complementação da pavimentação da BR-319 tem que ser precedida da criação de Unidades de Conservação de Proteção Integral e a homologação de Terras Indígenas no entorno da rodovia, a exemplo do que foi feito quando da pavimentação da BR-163 (Cuiabá-Santarém), condição essencial para se evitar a devastação do sul amazonense.
Com a palavra os governos Federal e do Estado do Amazonas.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan (atual IPEDF) e do Conselho Federal de Economia