Mario Pontes
No final da rua ergui os olhos de adolescente para a calçada alta e vi meu primo a balançar-se na cadeira de vime. Saudei-o:
– Olá, Doutor, como vai?
– Cansado – respondeu. E explicou-se: acabava de voltar de uma viagem que o levara às matas virgens do Maranhão. Sozinho? Não. Em companhia de um amigo. Revezavam-se na direção do Jipe e dividiam as tarefas do dia a dia. O que tinham ido fazer naquelas lonjuras? Caçar. Mas meu primo doutor parecia um pouco decepcionado.
– Já caçaram quase tudo!…
Ainda assim matara uns quarenta bichos; e trouxera, como troféu, uma bonita pele de gato maracajá… Se sentia pena dos animais? Claro que não! Eles existem pra nos servir de todas as maneiras – lembrou-me.
Meu primo Doutor não me convenceu. E muitos anos mais tarde, nas páginas de seu livro Man and natural world (O homem e o mundo natural, na edição brasileira), o historiador inglês Keith Thomas respondeu às perguntas que eu me fazia desde o encontro com meu primo Doutor.
Até o final da Idade Média, Thomas explica, os europeus matavam os animais na estrita medida de suas necessidades alimentares. Uma das razões de sua contenção estava no fato de nunca terem lido a Bíblia. Que só era editada em latim; e cuja leitura só era recomendada a quem tinha alguma iniciação teológica. Mas quando Lutero traduziu-a para o alemão e abriu as portas para que seus seguidores fizessem o mesmo em outras línguas, os novos leitores tiveram de percorrer apenas algumas dezenas de linhas para chegar ao capítulo nove do Genesis e inteirar-se do que Deus tinha dito aos homens após o Dilúvio: “Sede o medo e o pavor de todos os animais da Terra, pois tudo que se move e possui vida vos servirá de alimento”.
O conhecimento dessa passagem da Bíblia – isolada de qualquer contexto –, diz-nos o historiador, foi recebido pelos europeus do século XVI como uma autorização para apossar-se da natureza, e não apenas usá-la na medida das necessidades, mas destruí-la, juntamente com seus habitantes, em conformidade com os interesses imediatos e os sonhos mais mesquinhos. Um poeta inglês do século XVIII, lembra Thomas, chegou ao extremo de escrever um poema no qual os animais se oferecem alegremente para serem sacrificados pelos homens:
A perdiz, a cotovia e o faisão,
como para a Arca, à tua casa vão.
Solitário volta o boi ordeiro
ao matadouro junto com o cordeiro.
E cada bicho segue a senda,
levando ele próprio em oferenda.
A idéia impregnou o espírito de gerações de colonizadores e permanece enraizada na mente dos seus herdeiros espirituais. Até hoje, a leitura literal daquela passagem do Gênesis é usada como salvo-conduto pelos que não podem separar a idéia de progresso da destruição sistemática dos bens terrenos, a começar pelos seus habitantes não humanos.
Quem sai a queimar…
Conspiração contra o riso
Frida entre nós