Júlio Miragaya (*)
Os dados são irrefutáveis. O favoritismo de Lula para sua reeleição daqui a um ano – não obstante a sabotagem do Banco Central e do Centrão no Congresso Nacional – revela que o Brasil tem avançado, e muito, em diversas áreas. O PIB, mesmo timidamente, crescerá pelo 3º ano consecutivo; a inflação está contida; o desemprego está em queda; programas como o Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular e Mais Médicos foram restabelecidos; outros criados, como o Pé de Meia; os trabalhadores com rendimento até R$ 5.000 ficaram isentos do IR. A lista é extensa, mas muito ainda há por ser feito. Por exemplo, em relação à fome.
O IBGE recém divulgou informações da PNAD referentes à insegurança alimentar no Brasil em 2024. O dado positivo é que caiu o percentual de domicílios em insegurança alimentar em seus três níveis (leve, moderado e grave) em relação a 2023. O negativo é que ainda são 24,2% dos domicílios do País com algum grau de insegurança alimentar, e o mais crítico, 7,7% com insegurança alimentar moderada ou grave. Isto é, cerca de 16,5 milhões de pessoas tendo que reduzir a quantidade de alimentos consumidos ou literalmente passando fome.
Insegurança alimentar leve ocorre quando as pessoas podem abrir mão da qualidade dos alimentos para garantir a quantidade, mas não sentem fome. A moderada é quando ocorre a redução na variedade e quantidade dos alimentos consumidos e quando os adultos deixam de comer para que as crianças se alimentem. Já a grave é a falta de acesso a alimentos suficientes, onde as pessoas podem passar um dia ou mais sem comer.
Em 2004, quando Lula recém assumira a presidência, a insegurança alimentar grave e moderada atingia 16,8% dos domicílios. Em 2013, após os dois mandatos de Lula e três anos de governo Dilma, caíra pela metade (7,8%). Em 2017/18, no governo Temer, subira para 12,7%. E em 2024, voltou a cair, para 7,7%. Certamente tal redução foi resultado de políticas públicas como o aumento real do salário-mínimo, a ampliação do Bolsa Família e do BPC. Mas tais políticas, embora sejam fundamentais para mitigar o problema, não têm sido suficientes para acabar com a fome.
É importante destacar que a fome no Brasil não tem qualquer relação com baixa oferta de alimentos. Afinal, os 90 milhões de hectares cultivados no país são mais que suficientes para propiciar alimentos para toda a sua população e ainda gerar um enorme excedente exportável. O problema é a baixa renda de uma parcela enorme da população. Nada menos que 72% dos casos de insegurança alimentar grave ou moderada ocorrem nos domicílios com rendimento mensal per capita inferior a um salário-mínimo.
Tal situação é decorrente do fato de que 43% da PEA do país (48 milhões de pessoas) esteja na informalidade (39,2 milhões de assalariados sem carteira, conta própria sem CNPJ, empregados domésticos e trabalhadores familiares auxiliares), com baixos rendimentos, ou, incluindo os desalentados, estejam desempregados (8,8 milhões).
Já o recorte de raça/cor revela que a fome no Brasil tem cor: 75% dos domicílios com insegurança alimentar grave e moderada são chefiados por pessoas pretas ou pardas, embora esses representem pouco mais de 50% da população. A PNAD revela também que a fome atinge principalmente os mais jovens, crianças na primeira infância (até 4 anos) e demais crianças e adolescentes (5 a 17 anos).
Para conseguir acabar com a fome, não há outro caminho que não seja avançar na redução da enorme desigualdade social. E como avançar tendo como barreiras uma burguesia ultrarreacionária, que nada quer ceder e que comanda um Congresso Nacional que se dedica a preservar e ampliar os privilégios dessa burguesia e sabotar as políticas sociais?
Seria o caso de buscar cooptar esses parlamentares, agrupados nos partidos do chamado Centrão (PSD, MDB, UB, PP e Republicanos)? Exemplos recentes revelam que a busca da governabilidade por esse caminho não tem funcionado. O governo concedeu centenas de cargos em ministérios e empresas públicas a esses partidos e o retorno em votos na Câmara e no Senado tem sido pífio.
Mas quando se apostou na mobilização social, o resultado foi outro. Após as 400 mil pessoas nas ruas em 21 de setembro (100 mil no Rio e em São Paulo; 100 mil em Salvador, Brasília, Fortaleza, Recife e Porto Alegre e outros 200 mil em mais 40 cidades do país), a própria direita enterrou a PEC da Bandidagem no Senado, e deu, na Câmara, 100% de seus votos ao projeto do governo de isentar do IR os que têm rendimento de até R$ 5.000, compensando com maior tributação dos mais ricos.
Em suma, o povo deu seu recado ao governo e aos partidos de esquerda: esqueçam a conciliação com a direita e apostem na mobilização popular!
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan (atual IPEDF) e do Conselho Federal de Economia