Em tempos de análises precipitadas e alarmistas sobre um suposto enorme avanço da extrema-direita na Europa e uma iminente ameaça fascista, torna-se oportuno caracterizar com maior precisão o que, de fato ocorre, hoje na Europa e no mundo. Inicialmente, é necessário dizer que em nenhum país europeu governado pela extrema-direita (Itália, Hungria, Polônia) foi instaurado um regime fascista. Longe disso, pois não depende do desejo de seus líderes, mas da necessidade sentida pela burguesia.
Os partidos de extrema-direita, no governo ou não, podem ter semelhanças com certas práticas fascistas, mas inexistem as condições políticas para que um regime fascista ele seja instaurado. Assim como o deputado paulista Orleans e Bragança e um bando de lunáticos pregam a restauração da monarquia no Brasil, mas lhes faltam condições políticas para tanto, existem milhares de cidadãos fascistas, nazistas ou neonazistas mundo afora.
Mas isso não basta, pois inexistem as condições políticas para se instaurar um regime fascista. Autores como Humberto Eco, Peter Davies, Richard Evans, Noberto Bobbio e outros têm discorrido sobre o fascismo, relatando suas inúmeras particularidades (militarismo, nacionalismo, xenofobia, supremacismo racial, misoginia, homofobia, violência, repulsa ao coletivismo e a valores liberais e culto dos valores tradicionais, como religião, família e patriotismo). Entretanto, não apontam claramente o essencial: o papel histórico do fascismo.
Antes de analisarmos o regime fascista, abordemos o regime bonapartista, uma espécie de experimento primário da burguesia. Bonapartismo é um termo criado por Marx para caracterizar o regime de Napoleão Bonaparte (1799/1815) e de seu sobrinho Luís Bonaparte (1851/70). Segundo a definição de Marx, “é a forma de governo em que é desautorizado o poder legislativo, que no estado democrático burguês constitui o poder primário e em que se dá a subordinação de todo o poder ao executivo, dirigido por um personagem carismático, que se apresenta como representante direto da nação, garantidor da ordem pública e árbitro imparcial diante dos interesses contrastantes das classes”. Parece fascismo, não? Mas não é.
Leon Trotsky em “Revolução e Contra Revolução na Alemanha”, escrito entre 1931 e 1932, discorrendo sobre os erros da esquerda alemã que precipitaram a meteórica ascensão de Hitler, caracterizou como bonapartista os governos Papen (junho a novembro/32) e Schleicher (dezembro/32 a janeiro/33), que antecederam Hitler, afirmando que “quando a luta entre exploradores e explorados atinge a mais alta tensão, estabelece-se as condições para a dominação da burocracia, da polícia e dos militares e o governo torna-se ‘independente’ da sociedade. É precisamente o esquema do bonapartismo”.
Mas, segundo Trotsky, “o regime bonapartista só pode adquirir um caráter relativamente estável e duradouro no caso de fechar uma época revolucionária, com o esgotamento da energia das massas na luta”, o que não era o caso da Alemanha em 1931/33, em plena ebulição revolucionária. Daí a burguesia decidir dar um passo adiante, recorrendo ao fascismo.
Adiantando que abusarei das apreciações de Trotsky sobre o fascismo, ele explica que “é preciso sempre examinar a questão das relações das três classes da sociedade: da grande burguesia, dirigida pelo capital financeiro, da classe trabalhadora e da pequena-burguesia, que oscila entre os dois campos fundamentais”. Então examinemos:
Segundo o revolucionário bolchevique, “nas condições do capitalismo atual (década de 1920 e 1930), um governo que não seja agência do capital financeiro é, em geral, impossível. Mas a grande burguesia, que é uma pequena minoria da nação, não se pode manter no poder se não tem apoio na pequena burguesia das cidades e dos campos. Se as classes dominantes pudessem dominar diretamente, não teriam necessidade nem do parlamentarismo, nem da socialdemocracia, nem do fascismo”.
É evidente o desprezo da burguesia pela democracia e apenas confirma aquilo que Lênin, ao analisar a democracia burguesa, dizia que ela não passava de uma ditadura velada da burguesia. Para a burguesia monopolista, o regime parlamentar e o regime fascista não representam senão diferentes instrumentos de sua dominação: recorre a um ou outro segundo as condições históricas.
Segundo Trotsky, esse apoio, na época em questão, tomava duas formas principais, politicamente antagônicas, mas que historicamente se completavam: a socialdemocracia e o fascismo. E qual seria, segundo ele, o papel desempenhado pela socialdemocracia? “Desde a Guerra Imperialista que o trabalho da socialdemocracia, uma agência da burguesia imperialista no seio da classe trabalhadora, consiste em expulsar da consciência do proletariado a ideia de uma política autônoma, inspirar-lhe a crença na eternidade do capitalismo. A tarefa da socialdemocracia não consiste mais em conciliar os trabalhadores com o capitalismo por meio de reformas. A nova política da socialdemocracia passou a consistir em salvar a sociedade burguesa à custa da renúncia às reformas”.
Pois não é exatamente isso que ela tem feito, inclusive nos últimos anos? Os principais partidos da socialdemocracia europeia – SPD, na Alemanha; OS, na França; Partido Trabalhista, na Grã-Bretanha; e PSOE, na Espanha – quando estiveram no poder, se empenharam em implementar as mesmas políticas neoliberais que os partidos da direita, assentadas na austeridade fiscal, sinônimo de desmonte do Estado de Bem-Estar Social.
Mas, continuava Trotsky em 1931, antes da ascensão de Hitler: “O capital tem necessidade de outra política mais decisiva e o apoio da socialdemocracia é insuficiente. A burguesia precisa desembaraçar-se completamente da pressão das organizações operárias, dispersá-las, destruí-las. Aqui começa a função histórica do fascismo. Ele põe de pé a pequena-burguesia que teme ser precipitada nas fileiras do proletariado, organiza-a, militarizando-a com os meios do capital financeiro, e a orienta para a destruição das organizações operárias”.
Foi o que ocorreu na Alemanha na década de 1920. Em 1919 a socialdemocracia, com 45,5% do eleitorado, governava a Alemanha e não se furtou em reprimir fortemente as organizações operárias, salvando o regime burguês alemão. Já em 1924 a socialdemocracia (junto com o recém-criado Partido Comunista Alemão) perdera a confiança de milhões de apoiadores e caíra para 33% do eleitorado.
A burguesia alemã, a mais poderosa da Europa e já se recuperando da derrota na 1ª Guerra, já não precisava tanto do SPD, e seus dois principais partidos, o Partido Popular Nacional Alemão (PPNA) e o Zentrum, retomaram o domínio da cena política, e junto com outros partidos burgueses menores, obtiveram cerca de 60% dos votos.
Nas eleições de 1924, o Partido Nazista conseguira apenas 6,5% dos votos. Mas as dificuldades econômicas e sociais voltaram a conflagrar o quadro político, e nas eleições de setembro de 1928, SPD e PCA avançaram para 40,4% dos votos, mantendo a direita tradicional a maioria das cadeiras no Reichstag, enquanto o Partido Nazista refluíra para 2,6% dos eleitores.
A quebra da Bolsa de New York, em outubro de 1929, precipitou uma mudança radical do cenário. A quebradeira de empresas cresceu de forma meteórica e milhões de trabalhadores alemães foram jogados no desemprego. O mais poderoso proletariado europeu poderia entrar numa escalada revolucionária, a qual a socialdemocracia não seria capaz de conter.
Na eleição seguinte, em setembro de 1930, o SPD e o PCA obtiveram mais 700 mil votos, avançando para 13,2 milhões, e a burguesia alemã, percebendo que a direita tradicional não conteria o proletariado alemão, investiu fortemente no Partido Nazista. O resultado foi a queda na votação dos partidos tradicionais de direita, de 57% para 44% e o meteórico crescimento do Partido Nazista, para 6,4 milhões de votos (18,2%).
É nesse período que é rapidamente fortalecida a Sturmabteilung (SA), as militarizadas tropas de assalto nazistas, comandadas por Ernst Rohm. Dedicadas ao ataque às assembleias de trabalhadores, às sedes de sindicatos e partidos políticos de esquerda, à intimidação, espancamento e assassinato de lideranças operárias, as SA passaram de algumas centenas de membros a 300 mil em meados de 1932 (chegou a 3 milhões em 1934), alimentadas, vestidas, armadas e sustentadas pela burguesia alemã.
Em julho de 1932, os dois partidos de esquerda mantiveram seu eleitorado, mas os partidos da direita minguaram para 26,8% dos votos, perdendo cerca de 6 milhões de eleitores, quase que integralmente transferidos para o Partido Nazista, que chegou a 37,3% do total.
Na eleição seguinte, em novembro de 1932, SPD e PCA, este seguindo orientação de Stalin, mesmo com quase 40% do eleitorado, se digladiavam e se recusavam a formar uma frente para conter as hordas fascistas. Dessa forma, a burguesia alemã, mesmo com os nazistas perdendo 2 milhões de eleitores, com 33,1% do total dos eleitores alemães, pressionaram o presidente Hindenburg a nomear Hitler como 1º Ministro, o que ocorreu em 30 de janeiro de 1933. A partir daí a história é bem conhecida.
Para Trotsky, “os magnatas do capital financeiro, sozinhos, são incapazes de liquidar o proletariado com a sua própria força. A burguesia em declínio, é incapaz de se manter no poder pelos métodos do Estado parlamentar que criou. Precisa do apoio da pequena-burguesia, que precisa ser posta de pé, mobilizada e armada e recorre ao fascismo como arma de autodefesa nos momentos mais críticos. O fascismo é uma reação da sociedade burguesa contra a Revolução Proletária ameaçadora. Não seria necessário sem a crise do sistema capitalista, sem a acentuação da luta de classes, sem proletariado revolucionário. É quando a crise se agudiza que entra em cena um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena-burguesia a dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o proletariado”.
Trotsky explica que “a hora do regime fascista chega no momento em que os meios militares-policiais “normais” da ditadura burguesa, com a sua capa parlamentar, se tornam insuficientes. Por meio da agência fascista, a burguesia põe em movimento as massas da pequena-burguesia enfurecida, os bandos de desclassificados, os lupen-proletários, todas essas existências humanas que o próprio capital financeiro levou ao desespero. O ídolo de ontem da pequena-burguesia se transforma em polícia do capital”.
E continua Trotsky: “A essência e a função do fascismo consistem em abolir completamente as organizações operárias e em impedir o seu restabelecimento. Numa sociedade capitalista desenvolvida, esse objetivo não pode ser atingido pelos meios policiais, unicamente. A única via para isso é opor ao ataque do proletariado o ataque das massas pequeno-burguesas enraivecidas. É precisamente esse sistema particular de reação capitalista que entrou na história sob o nome de fascismo.
E conclui: “Antes de tudo e, sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisso que consiste a essência do regime fascista. O fascismo, portanto, não é simplesmente um sistema de repressão, de terror policial. O fascismo é um sistema de Estado particular, baseado na exterminação de todos os elementos da democracia proletária na sociedade burguesa. O fascismo não é absolutamente um traço distintivo de todos os partidos burgueses, mas constitui um partido burguês especial, adaptado a condições e tarefas particulares, em oposição aos partidos burgueses”.
Mais claro, impossível! Mas, segundo Trotsky, “a grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente”. “Com o governo Papen, os barões, os magnatas capitalistas, os banqueiros, empreenderam a tentativa de garantir a sua causa por meio da polícia e do exército regular. A ideia de entregar todo o poder a Hitler, que se apoia nos bandos ávidos e desenfreados da pequena-burguesia, não pode alegrá-los”.
Alguns autores classificam a atual extrema direita como pós-fascismo. Talvez! No mundo atual, a classe trabalhadora vive uma crise de direção. Após as repetidas traições dos partidos socialdemocratas e stalinistas, não se vêm no horizonte perspectivas reais de uma nova vaga revolucionária. Se não se vê ameaçada, e contando com o apoio majoritário da amedrontada pequena-burguesia, a grande burguesia não vê necessidade de recorrer a um regime fascista, podendo manter tranquilamente sua ‘capa parlamentar’.
O historiador italiano Emile Gentili caracterizou o fascismo como um fenômeno específico entre as duas guerras mundiais, que emergiu na Alemanha e na Itália, não por acaso, uma potência que perdeu muito no pós-guerra e outra que nada ganhou; onde a crise econômica do pós-guerra (e pós crack da Bolsa de N. York) foi mais intensa e onde a vaga revolucionária mais ameaçou a burguesia.
Nenhum dos países europeus vive situação minimamente próxima a essas, razão pela qual os atuais partidos de extrema-direita na Europa não têm a menor possibilidade (ou necessidade) de instaurar regimes fascistas, sequer bonapartistas. O que não quer dizer que não seja um imenso obstáculo ao progresso social e uma formidável ameaça à democracia.
Mas a base dos partidos de extrema-direita não prossegue sendo a pequena-burguesia, urbana e rural? Sem dúvida. Mas Trotsky alertava que “as relações entre a burguesia e o seu esteio social, a pequena-burguesia, não residem na confiança recíproca. Como massa, a pequena-burguesia é uma classe explorada e coloca-se diante da grande burguesia com inveja. Já a burguesia, enquanto se serve do apoio da pequena-burguesia, desconfia desta, pois teme que ela esteja disposta a transgredir os limites que lhe são impostos de cima”.
E concluía que: “A pequena-burguesia não está condenada a continuar como instrumento nas mãos do capital até o fim de seus dias, tal aliança não é indissolúvel. Mas incapaz de uma política independente, só lhe resta escolher entre a burguesia e o proletariado. E ela é perfeitamente capaz de se inclinar para o proletariado, desde que tenha confiança na capacidade deste em dar à sociedade um novo rumo”.
Eis a questão! Cabe à classe trabalhadora e aos partidos que a representem legitimamente, apresentar à sociedade uma estratégia política que supere a crise terminal do sistema capitalista, suficientemente forte para atrair setores da classe média.
Até então, desde a experiência de 1917, a classe trabalhadora não foi capaz de forjar tal direção política, e nisso consiste o drama da humanidade, pois enquanto as condições objetivas para a superação do sistema capitalista, em sua fase senil, estão mais que amadurecidas, não se vislumbra no horizonte político a formação de uma autêntica direção política que conduza a humanidade para o socialismo.