(*) Júlio Miragaya
“Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, e vai para a terra que te mostrarei”. Segundo a Torá, esta foi a mensagem que Abraão ouviu de Deus há 4 mil anos. A terra era Canaã, a atual região que compreende Israel, Cisjordânia e Gaza, habitada pelos cananeus. Quatro séculos depois, após a fuga dos hebreus para o Egito, uma nova mensagem de Deus, agora a Moisés: “Vá à terra que jurei a Abraão. A uma terra que emana leite e mel. Enviarei um anjo diante de ti e expulsarei os cananeus, amorreus, heteus, heveus e jebuseus”.
Muito embora Abraão e Moisés sejam, provavelmente, figuras míticas, pois não há na historiografia e na arqueologia qualquer comprovação de suas existências, inacreditavelmente é com base nesses hipotéticos diálogos de Deus com ambos, de uma “Terra Prometida”, que o Estado de Israel, sob pressão dos partidos religiosos, vem implementando uma política de anexação dos territórios palestinos da Cisjordânia e Jerusalém Oriental.
O apelo religioso para justificar a expansão territorial e a expulsão de povos inteiros não é exclusividade da religião judaica. O islamismo lançou mão deste apelo para submeter inúmeros povos do Oriente Médio, África Setentrional e Ásia Central entre os séculos VII e IX; assim como o fizeram os reinos cristãos contra os islâmicos nas Cruzadas e os Cavaleiros Teutônicos contra eslavos e bálticos ou, posteriormente, os reinos católicos (Espanha, Portugal e França) e protestante (Grã Bretanha), aniquilando povos das Américas e da África; ou ainda os ortodoxos russos, que nos séculos XVII a XIX submeteram povos da Sibéria e do Turquestão.
A base do argumento era sempre a mesma: uma suposta superioridade moral (conferida pela religião professada) e étnico/racial. O chamado “Destino Manifesto”, que justificou a expansão norte-americana no século XIX rumo ao oeste, submetendo e expulsando povos indígenas e mexicanos, obedecia a uma “missão divina” de levar a civilização a povos atrasados e/ou pagãos. O mesmo ocorreu no sul do Brasil no fim do século XIX, onde o Estado promoveu a “remoção” de povos indígenas para o assentamento de colonos alemães, italianos e poloneses.
É fato que desde a segunda diáspora, provocada pela expulsão romana em 70 DC, os judeus têm sido sistematicamente perseguidos: expulsão da Inglaterra em 1290; da Espanha e Portugal no fim do século XV; os sangrentos pogrons no Império Russo (Rússia, Ucrânia, Polônia, Bessarábia) na segunda metade do século XIX; o caso Dreyfus na França (1894/1906); culminando no trágico holocausto promovido pelos nazistas alemães nas décadas de 1930/40.
Foi esse sentimento de serem tratados como estrangeiros indesejáveis que motivou o movimento sionista no final do século XIX (o 1º Congresso Sionista ocorreu em 1897, na Basiléia) e a busca de um território próprio. Mas este desejo legítimo não poderia implicar na expulsão e aniquilamento de um outro povo. Curiosamente, o jargão sionista “Uma terra sem povo para um povo sem terra” (sic) foi similar ao usado na Amazônia pela ditadura militar para desalojar indígenas de suas terras e doá-las a colonos do centro-sul do País.
Inócua – As escaramuças entre Gaza e Israel de 2008 a 2022 resultaram em números desproporcionais de mortos: 6.140 palestinos, majoritariamente civis (1.437 crianças) e 279 israelenses (21 crianças), a maioria militares. Os civis mortos pelos foguetes artesanais disparados de Gaza não chegaram nesses 15 anos a meia centena, pois, além de reduzido poder de destruição, a quase totalidade foi neutralizada pelo “Domo de Ferro”.
Já nos ataques em 7 e 8/10, os cerca de 3.000 militantes do Hamas que penetraram em território de Israel (1.500 foram mortos) brutalizaram principalmente civis (1.100), incluindo dezenas de crianças, além de matarem 300 militares/policiais. Mas não mais que dez israelenses foram mortos pelos milhares de foguetes artesanais disparados de Gaza.
Israel diz que o bombardeio de Gaza tem como objetivo matar os chefes do Hamas e destruir as bases de lançamento de foguetes. Ora, do ponto de vista militar, tal estratégia é absolutamente inócua. De um lado porque os foguetes disparados de Gaza responderam por parcela ínfima das mortes pelo Hamas. De outro porque até domingo (15/10) o exército israelense afirmou ter matado 7 chefes do Hamas, num total de 2.800 palestinos mortos, sendo 900 crianças (além das centenas que foram mutiladas).
Ou seja, nada menos que 130 crianças assassinadas para cada chefe do Hamas morto. Tal fato, associado ao corte por Israel do suprimento de água, alimentos, medicamentos, eletricidade e combustíveis em Gaza revela que o objetivo de Netanyahu vai muito além de eliminar o Hamas.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia