Júlio Miragaya (*)
Após negar a existência da fome no Brasil, desprezando o drama que assola 33 milhões de brasileiros, Bolsonaro, em mais um surto de “sincericídio”, declarou a empresários paulistas: “É preciso ter noção da situação de cada setor da sociedade, pois não tem filé mignon para todo mundo”.
O autodeclarado “tigrão” mais uma vez se apresentou perante a classe dominante como “tchutchuca”, garantindo que lá está para preservar os privilégios dos mais ricos. Filé mignon é para a burguesia e para a classe média alta. Para o povo, restam os ossos, pelanca, cabeças de peixe e pés de galinha.
Rejeitado por mais de 70% do eleitorado de baixa renda, que consideram seu governo ruim ou péssimo, Bolsonaro apela ao vale tudo eleitoral para reduzir a desvantagem para Lula nas intenções de voto apontadas por todas as pesquisas. Numa tentativa desesperada, com o apoio do grande empresariado e a cumplicidade do Congresso Nacional, atropela nossa combalida Constituição e faz uso, em escala oceânica, do orçamento público para praticar o mais descarado estelionato eleitoral.
Começando pelo aumento do Auxílio Brasil de 400 para 600 reais. Num cenário em que dezenas de milhões de brasileiros passam fome, claro que se trata de uma medida que deve ser aprovada. E assim votou a esquerda no Congresso. Mas a motivação de Bolsonaro é apenas eleitoral, pois poderia ter adotado a medida antes e garantido sua validade para o próximo ano. Mas ele não a incluiu na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023. Na mesma linha, implantou o vale gás, vale taxista e vale caminhoneiro com prazo até as eleições.
Já a liberação de bilhões de reais para o “Orçamento Secreto”, controlado pelos deputados e senadores do “Centrão”, implicou na redução de gastos em várias áreas, como a de C&T, Saúde e Previdência. Contudo, o mais escandaloso foi seu veto ao aumento do repasse federal destinado à alimentação escolar a estados e municípios, congelado desde 2019, que reserva pífios R$ 0,53 para cada criança da pré-escola e R$ 0,36 para cada aluno do ensino fundamental. No cardápio ideal de Bolsonaro para crianças e adolescentes, certamente consta pés de galinha.
Do mesmo modo, a redução do preço da gasolina busca atrair o voto de setores da classe média aporofóbica. Só que a queda de preço se deu com a redução de impostos, especialmente do ICMS. Isto é, às custas da receita dos estados, com reflexos na capacidade de gastos destes na educação e na saúde. Em suma, faz gracejo à classe média tirando dos mais pobres. Só que esses não bebem gasolina, bebem leite, que em 2022 já aumentou 79,8%.
A situação dos trabalhadores e dos mais pobres é dramática. A perversa combinação: (a) alta taxa de desemprego e precarização das relações de trabalho com (b) queda do rendimento médio do trabalho e (c) escalada inflacionária resultou no enorme aumento do endividamento das famílias. O percentual de famílias endividadas saltou de 40% em 2015 para os atuais 77%. E, num cenário em que as taxas de juros são as maiores dos últimos anos, quase 30% se tornaram inadimplentes, contra 12% há sete anos.
Neste 7 de setembro, os bolsonaristas voltam a falar em liberdade, o que, para eles, é a liberdade para fazer do Brasil a “casa da mãe Joana”. Para a turma do agronegócio, desmatar, botar fogo nas matas, invadir terras indígenas e espalhar veneno nas plantações. Para os empresários gananciosos, tirar o sangue dos trabalhadores, explorar o trabalho infantil e até o trabalho escravo. Para bandidos e salafrários travestidos de religiosos, explorar a fé do povo. Para militares oportunistas, acessar as “boquinhas” amealhando remunerações acima de 100 mil reais mensais.
Mas o povo brasileiro não perdeu a esperança de dias melhores, em que ossos, pelanca, cabeças de peixe e pés de galinha eram apenas matéria-prima para ração animal.
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia