Júlio Miragaya (*)
Passados mais de cinco meses de seu início, a guerra entre Rússia e Ucrânia parece que vai se estender além do inicialmente previsto pelos analistas, com milhares de vítimas. Mas, o que esperar dos corruptos oligarcas russos, do imperialismo norte-americano e do fantoche Zelenski? Tratarei do tema neste e no próximo artigo, com um breve histórico da Ucrânia e possíveis desdobramentos da guerra.
Os ucranianos começaram a se constituir como povo levemente distinto dos russos a partir do século XVI, quando eslavos que viviam sob o domínio da República das Duas Nações, sob a cruel servidão imposta pelos barões poloneses, se refugiaram no baixo-médio Dnieper e formaram o Zaporozhian Sich, “Estado Cossaco” semiautônomo dentro da Comunidade Polaco-Lituana, organizado para resistir aos ataques das hordas tártaras do Canato da Crimeia (atualmente, os oblasts de Dnipropetrovsky, Kirovohrad e norte de Zaporizhia).
Em 1649, outros grupos formaram o Hetmanato Cossaco, a “margem direita do Dnieper” (oblasts de Kiev, Cherkasy, Zhytomir, Vinnytsia e Khmelnytskyi), também na órbita da República das Duas Nações, os territórios originalmente habitados pelos ucranianos, que significa povo da “fronteira”.
Mas as porções oriental e meridional do atual território da Ucrânia não eram habitadas por ucranianos. Eram territórios lituano e turco tomados pelos russos, a chamada “margem esquerda do Dnieper” ou “Pequena Rússia” (oblats de Poltava, Chernigov e oeste de Sumy) e a antiga província russa de “Sloboda Ucrânia” (oblast de Kharkiv, leste de Sumy e norte de Luhansk), ambas regiões lituanas tomadas pelos russos nos séculos XVI e XVII e constituídas como primeira linha de defesa contra ataques tártaros; os “campos selvagens”, vastas estepes nas bacias do Mar Negro e do baixo Dnieper pertencentes ao antigo Canato da Crimeia, protetorado turco tomado pelos russos em 1764 e denominado “Nova Rússia” (oblasts de Donetsk, sul de Luhansk, sul de Zaporizhia, leste de Mykolaiv e Crimeia), além do Yedisan, território turco tomado pelos russos em 1792 (oblasts de Odessa e oeste de Mykolaiv).
Já com os dois “Estados Cossacos” sob domínio do Czarado da Rússia desde o século XVII, essas regiões russas receberam ao longo dos séculos XVIII e XIX fortes correntes migratórias ucranianas, mas mesmo após esses fluxos, os russos étnicos no final do século XIX ainda eram 68% em Luhansk, 63% em Kharkiv, 63% em Mariupol, 58% em Kerch, 66% em Mykolaiv e 49% em Odessa (Censo Demográfico Russo de 1897), todas grandes cidades de regiões russas incorporadas à República da Ucrânia em 1922.
A Ucrânia só se constituiria como nação independente após a Revolução Russa de 1917, e essas regiões, historicamente russas, foram incorporadas ao território ucraniano em 1922 por decisão de Lênin (a Crimeia, russa, viria a ser “doada” à Ucrânia por Krushev em 1954).
Sobre a delimitação da fronteira russo/ucraniana, Lênin afirmou em 1919: “Sejam quais forem as fronteiras da Ucrânia e Rússia, sejam quais forem as formas de suas relações como Estados, não são coisas tão importantes; sobre isto se podem e se devem fazer concessões, a causa da vitória sobre o capitalismo não sucumbirá por isto”.
Fica claro que Lênin defendia a autodeterminação dos ucranianos, e por priorizar a revolução proletária, defendia que a delimitação das fronteiras entre Rússia e Ucrânia não fosse um empecilho. Foi a este processo que Putin se referiu como “parte dos territórios históricos da Rússia ‘entregues’ à nação ucraniana por Lênin e os camaradas bolcheviques”.
Após a 2ª Guerra Mundial, as atuais fronteiras ucranianas ganharam forma definitiva com a incorporação da Galícia (oblasts de Lvov, Ternopil e Ivano-Frankivsk), Volínia (Volyn e Rivne), Bukovina (Cherniwtsi) e Rutênia (Zakarpatia), predominantemente habitada por ucranianos que estavam sob domínio da Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia.
Passados 70 anos da criação da República Ucraniana, em 1991, 69% da população da Crimeia eram de russos étnicos e 46% do Donbass (províncias de Donetsk e Luhansk). Nos dez anos seguintes, após a independência da Ucrânia, perseguições levaram 1,5 milhão de russos étnicos a deixar a Criméia, o Donbass e demais oblasts meridionais.
Esta é a breve história ucraniana. Não são versões, são fatos históricos.
(Continua na próxima edição)
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia