Putin, chefe dos oligarcas, tenta impedir o cerco à Rússia. Ele sabe que se a Ucrânia cair, ela será a próxima, e que se não reagir agora será tarde
Júlio Miragaya (*)
É óbvio que as guerras são indesejadas, dado as numerosas vítimas que causam. Em geral, elas atendem aos interesses de uma “elite” que busca vantagens. É verdade que nem todas rezam por esta cartilha – há guerras que se justificam, como as de libertação, como por exemplo as travadas pelos argelinos contra a França; pelos vietnamitas contra os EUA e pelos cubanos contra a ditadura de Batista. Mas certamente não é o caso da guerra da Rússia contra a Ucrânia, na qual oligarcas de ex-repúblicas soviéticas se confrontam.
Também é comum a grande maioria das guerras serem apresentadas tendo como motivação conflitos étnicos, religiosos ou ideológicos – caso desta, na qual todas essas questões aparecem (ucranianos étnicos versus ucranianos de etnia russa; ortodoxos do Patriarcado de Moscou versus ortodoxos do Patriarcado de Kiev; ocidentais pró UE versus orientais pró Rússia) – quando na verdade eles são explorados para escamotear interesses econômico-financeiros.
Após a dissolução da URSS, o “canto de sereia” da integração à economia de mercado e à União Europeia (como o “primo pobre”, afinal, os eslavos são historicamente tratados pelas elites anglo-saxônicas como povos de 2ª categoria) seduziu todos os países da Europa Oriental. Num passe de mágica, as cúpulas das burocracias stalinistas se converteram em plutocratas e oligarcas que, travestidos de nacionalistas, e sob lemas como “Deus, Pátria, Família, Liberdade, Propriedade”, levaram esses países, não para o paraíso, mas para a degradação social e política.
O que ocorreu foi um despudorado processo de privatização, acompanhado de desindustrialização e aumento do desemprego, com forte fluxo migratório para subempregos no Ocidente; desmonte e mercantilização dos serviços públicos com queda no nível cultural e de instrução e brutal queda na expectativa de vida.
Exemplo mais eloquente é apresentado pela Johns Hopkins University: dos 20 países com maior taxa de mortalidade na pandemia da covid-19, 17 são da Europa Oriental, na companhia de Brasil, EUA e Peru. O fato é que esses ex-satélites soviéticos foram uma primeira onda de cooptação para a UE e a OTAN, e além de representarem um mercado expressivo para as potências ocidentais (136 milhões de consumidores), são fonte de mão-de-obra barata e de aprofundamento do isolamento russo.
A Ucrânia faz parte de uma nova onda de cooptação, na qual os golpes de Estado de 2004 e de 2013/14, travestidos de Revolução Laranja e Primavera Ucraniana, ou Euromaiden, foram o “canto de sereia” para atraí-la para a UE e OTAN. Mas não nos iludamos: o objetivo maior não é o mercado ucraniano, embora seja expressivo (42 milhões), mas a desestabilização da Rússia, gerar uma crise econômica que provoque insatisfação social e política e então levar o “canto de sereia da prosperidade e liberdade” para dentro da Rússia, para Moscou. Promover uma “Primavera Russa” e substituir os oligarcas no comando da rica e vasta economia russa, tudo com o apoio da grande mídia e da social-democracia vendida.
É a estratégia dos EUA para responder à “Rota da Seda” chinesa. A aproximação da China com a Rússia e com os países da Ásia Central e do Cáucaso, a coloca em vantagem na disputa por um mercado de 250 milhões de consumidores e no acesso aos enormes recursos minerais, agrícolas e florestais daquela vasta região.
Nunca foi tão presente a Teoria do Heartland de Mackinder, na qual quem controla a Eurásia controla o planeta. É o que busca a China, inclusive envolvendo a Índia e o Paquistão, e o que os EUA buscam desesperadamente obstruir. Putin, chefe dos oligarcas, tenta impedir o cerco à Rússia, sabe que se a Ucrânia cair, ela será a próxima. Putin sabe que se não reagir agora será tarde, e sabe também que não se faz omelete sem quebrar os ovos.
Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia
NOTA: Reparo à segunda parte da frase do piloto alemão Erich Hartmann: “A guerra moderna é a ocasião em que jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si, para defender os interesses de elites econômicas que se conhecem, se odeiam e competem ferozmente entre si.