Putin protesta, com razão, contra a quebra dos compromissos firmados quando da dissolução da URSS. Quando se trata dos interesses dos EUA, Biden é igual a Trump, a Obama, a Bush, etc.
Júlio Miragaya (*)
A possível guerra entre Rússia e Ucrânia tem monopolizado o noticiário internacional nas últimas semanas, lamentavelmente permeado de inverdades e com um enorme viés americanista. Segundo maior país em extensão territorial da Europa, com 42 milhões de habitantes, a Ucrânia vem sendo “seduzida” pelos EUA para se associar à OTAN. Uma provocação à Rússia.
A mídia orquestrada passa a imagem de uma Rússia selvagem e hostil. Mas ela tem motivos para temer as forças da OTAN em suas fronteiras. Embora os antigos Império Russo e a União Soviética (a partir de Stalin) não devam ser santificados, a história revela ter sido a Rússia, mais do que agressora, alvo de agressões por parte do Ocidente, sempre derrotado e repelido.
Derrota da invasão sueca em 1240, na Batalha do Neva; derrota da invasão teutônica (alemães) em 1242, na Batalha do Lago Peipus; derrota da invasão polaco-lituana em 1612, na Revolta de Moscou; derrota da invasão sueca em 1709, na Batalha de Poltava; derrota da invasão francesa de Napoleão em 1812, na Batalha de Maloyaroslavetz; derrota da agressão por Alemanha, Grã-Bretanha, França, EUA e mais 12 países contra o nascente Estado Soviético na Guerra Civil Russa (1918/21) que se seguiu à Revolução Russa de 1917; e derrota imposta à Alemanha em 1941/45, quando o Exército Vermelho destroçou a Wehrmacht nas épicas batalhas de Moscou, Stalingrado e Kursk.
Religião e migração
A formação territorial da Ucrânia é extremamente complexa. Desde o século V, toda a porção central e setentrional da vasta planície drenada pelos grandes rios que correm para o Mar Báltico e para o Mar Negro era ocupada por uma miríade de tribos e povos eslavos, notadamente russos, ucranianos e bielorrussos.
Em 882, sob o comando dos varegues, constituíram o Principado de Kiev, que posteriormente se fragmentou em diversos principados adeptos do cristianismo ortodoxo, que subsistiram até 1240, sucumbindo à invasão mongol. Após a saída destes, as planícies foram repovoadas pelos eslavos, e dois estados se sobressaíram.
A oeste, a União Polaco-Lituana, que em 1569 tornou-se a República das Duas Nações: além da Polônia e Lituânia (católicas), incorporara os territórios atuais da Bielo Rússia e norte/oeste da Ucrânia (majoritariamente ortodoxas). A leste, surgiu o Principado de Moscou (ortodoxo), depois Czarado da Rússia, que se expandiu até o médio Donetsk (Kharkov foi fundada pelos russos em 1654).
Quanto ao sul da planície, na bacia do Mar Negro e dos baixos Dnieper e Donetsk (sul e leste da Ucrânia) e do baixo Don e do Kuban (sul da Rússia), sua ocupação se deu por volta do século VII por povos túrquicos (pechenegues, khazares e polovtsys), posteriormente submetidos à Horda de Ouro mongol e, a partir de 1441, organizados no Canato da Crimeia, de religião islâmica, protetorado do Império Otomano.
Vitoriosa na Guerra Russo-Turca de 1768/74, a Rússia anexou o Canato da Crimeia. E nos cem anos seguintes, cerca de um milhão de tártaros da Crimeia emigraram para a Turquia, Balcãs e Ásia Central.
A região passou a ser povoada por russos, situação atestada pelo fato de que as capitais e principais cidades da região terem sido fundadas por russos: Zaporizhia (1770), Dnipropetrovsk, Kherson, Mykolaiv e Sebastopol (todas em 1776), Mariupol (1778), Odessa (1794), Luhansk (1795) e Donetsk (1870).
Com o colapso da República das Duas Nações (1791) e a partilha da Polônia (1772/95), o Império Russo se expandiu para oeste e incorporou a Bielo Rússia, o norte/oeste da atual Ucrânia e a Polônia e a Lituânia. A partir de então, com os ucranianos agora integrando o Império Russo, migraram aos milhares para a região pouco povoada que formara o Canato da Crimeia, partilhando com os russos o território.
República soviética
Em nenhum momento de sua milenar história, a Ucrânia existiu como nação. Isto só ocorreu em 1917, na Revolução Russa, com a República Socialista da Ucrânia, uma das 15 repúblicas da União Soviética.
Seu território passou a compreender não somente o território ancestralmente ocupado pela Polônia, mas também as regiões de colonização russa: três oblasts (províncias) na bacia do rio Donetsk (Donetsk, Luhansk e Kharkiv); quatro no baixo Dnieper (Dnipropetrovsk, Zaporizhia, Kherson e Mykolaiv) e um no baixo Dniester (Odessa), sendo que a península da Crimeia (com Sebastopol) se manteve território russo até 1954, sendo então cedida à Ucrânia por Kruschev.
Esses nove oblasts, em que quase metade da população é de etnia russa e mais de 70% falam o idioma russo, possuem 257 mil km² (42,6% do território ucraniano), 20,6 milhões de habitantes (46,8% do total) e tem os principais centros industriais e oito das 10 maiores cidades do país.
Discriminação e perseguição
Mas, não obstante serem milhões, os russos étnicos ou russófonos na Ucrânia têm sido, desde a independência, em 1991, discriminados e perseguidos. Formaram, em 1997, o Partido das Regiões, que, junto com o PC da Ucrânia, elegeram em cinco eleições de 1998 a 2012, de 26% a 43% do parlamento ucraniano e, inclusive, o presidente, em 2010. Mas, mesmo com tamanha expressão eleitoral, ambos foram declarados ilegais em 2015.
Desde então, o governo de Kiev vem proibindo o ensino do russo nas escolas e descumprindo o “Protocolo de Minsk” (2014), que prevê o “Estatuto Especial de Governança Local”, conferindo autonomia às regiões russófonas da Ucrânia. Acuados, os russófilos proclamaram repúblicas separatistas nos oblasts de Donetsk e Luhansk, ambas no Donbass, e o conflito bélico teve início, já com 15 mil mortos.
Em 1962, quando a URSS iniciou a instalação de uma base militar em Cuba, a 370 Km de Miami, os EUA ameaçaram iniciar a 3ª Guerra Mundial. E agora querem instalar bases da OTAN na Ucrânia, estando a fronteira desta a 70 Km de Rostov e a 40 Km de Belgorod, cidades russas em que foram travadas batalhas sangrentas na 2ª Guerra.
Instrumento de instabilidade
Putin protesta, com razão, contra a quebra dos compromissos firmados quando da dissolução da URSS, de não se levar a OTAN até às fronteiras russas. Quando se trata dos interesses norte-americanos, Biden é igual a Trump, que é igual a Obama, a Bush, Clinton, Reagan etc.
Os EUA fazem da OTAN um instrumento de instabilidade política, promovendo guerras cinicamente tratadas como ações humanitárias, como as da Bósnia, Kosovo, Somália, Iraque, Síria, Afeganistão, Líbia etc. Mas Biden sabe que, se o encontro de Putin com Bolsonaro não tem qualquer relevância, outra dimensão teve o encontro de Putin com Xi Jinping.
Separação do Texas dos EUA
Quando os capitalistas alemães, embalados pela suástica, buscaram escravizar os eslavos russos e ucranianos, esses povos se uniram e lutaram lado a lado. Morreram aos milhões, mas expulsaram os nazistas de Moscou, de Stalingrado, de Kiev e de Kharkiv. Hoje, o governo de Zelensky, em troca dos bilhões de dólares e euros, aceita que EUA e União Europeia transformem a Ucrânia numa ameaça permanente contra o coração da Rússia.
Admitir a Ucrânia na OTAN – que tem forte e milenar relação com a Rússia, fez parte do Império Russo por 200 anos e da URSS por outros 70, guarda com a Rússia uma vasta fronteira e em sua porção sul/leste, colonizada por russos, a maior parte da população tem etnia russa ou fala o russo – é como se Porto Rico ou o Texas – os hispanos já são mais de 40% da população texana e estão próximos de se tornarem maioria – se separassem dos EUA, perseguissem a minoria anglo-saxônica, coibissem o uso do inglês, tornassem ilegais os partidos Democrata e Republicano e passassem a integrar uma aliança militar comandada pela Rússia. Como reagiriam os EUA?
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia