A baiana Irmã Dulce acaba de ser reconhecida pela Igreja
Católica como Santa, no nível de Santo Antônio (seu Patrono), Santa Terezinha
ou mesmo o fantástico São Francisco. Será o primeiro Santo nascido no Brasil.
Foi perseguida durante anos pelo Vaticano, mas agora reconhecida. Nunca teve
mágoas por isso.
Desde a sua morte, em 1992, aos 77 anos, os baianos citam
milagres atribuídos a ela: curou portadores de graves doenças, os quais rezaram
em memória da religiosa. Tudo impossível de explicar por médicos e seus exames.
Há um cego, com diagnóstico presente, que de forma
surpreendente enxerga. Isso acaba de ser demonstrado na Globo. Como? Como?
Como?
O médico entrevistado riu e disse: “Ele é cego”. Mas vê.
E muitas outras pessoas continuarão pedindo a sua ajuda,
agora com fé ampliada. Nós, baianos, temos Irmã Dulce para zelar pelas nossas
famílias. E o Brasil também terá esta proteção para sempre.
O maior milagre da minúscula Irmã Dulce é a própria
existência. Durante muitas décadas, atendeu milhões de brasileiros nas obras
sociais, embora fosse portadora de grave deficiência respiratória.
Foi desenganada pela Medicina muitas décadas antes de
falecer, mas nunca parou de trabalhar. Deus lhe dava forças contra tudo,
lutando contra as perseguições do Estado e da Igreja.
É exemplo de caridade para o mundo.
Tive o privilégio de acompanhar a trajetória de Irmã Dulce
desde que nasci, vizinho que fui da sua instituição, no bairro de Roma, em
Salvador. E aqui faço relatos pessoais que ajudam a conhecer um dos seres mais
incríveis da humanidade, em todos os tempos. Foi uma santa sem barreiras
religiosas, que reconhecia os outros cultos e tinha carinho pelas religiões
afro-brasileiras.
Desde criança, ela já
era irmã dulce
O chamado “anjo bom da Bahia\” nasceu numa família
influente da Bahia, com o nome de Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes.
Nobre!
Era filha de Dona Dulce Maria (de quem assumiu o nome “Irmã
Dulce”), e do Doutor Augusto Lopes Pontes, dentista e professor da Universidade
Federal da Bahia.
Muito antes da modernidade, o pai dela já circulava em carro
próprio pelas ruas de Salvador. Como vemos, a garota abandonou uma vida de
amplo conforto para sofrer junto com os pobres.
Na juventude, ela lotava a casa dos pais, no tradicional
bairro de Nazaré, em Salvador, acolhendo doentes.
Ao longo das décadas, ajudou a criar várias instituições
filantrópicas. Uma das mais famosas é o Hospital Santo Antônio, que atende
milhares de pessoas por dia e que hoje passa por dificuldades.
Começou a trabalhar com
apenas 13 anos
Desde os 13 anos, ao visitar áreas carentes com uma tia, já
pensava em seguir a carreira religiosa. Sentia o apelo de Deus. Em 1933, após
se formar professora primária (1932), Maria Rita entrou para a Congregação das
Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em Sergipe. Tinha 19
anos.
Em 1934, passou a trabalhar em Salvador, para dar aulas. Em
1936, com apenas 22 anos, fundou com Frei Hildebrando Kruthanp a União Operária
São Francisco, primeiro movimento cristão operário da Bahia.
No ano seguinte, sempre com Frei Hildebrando, criou o
Círculo Operário da Bahia, mantido com a arrecadação de três cinemas que ambos
haviam construído através de doações. Em maio de 1939, Irmã Dulce inaugurou o
Colégio Santo Antônio, voltado para os operários e seus filhos.
No mesmo ano, para abrigar doentes que recolhia nas ruas,
invadiu cinco casas na Ilha do Rato, em Salvador. Depois de ser expulsa, teve
de peregrinar durante dez anos, instalando os doentes em vários lugares.
Foi expulsa da igreja
por ordem do papa
Na década de 40, invadiu um terreno ao lado do Convento de
Santo Antônio, no bairro de Roma, para abrigar pessoas abandonadas.
Adaptou um galinheiro, onde instalou doentes, velhos e
crianças. Criou naquele local a obra social que se expandiu de forma
impressionante ao longo das décadas.
A invasão de propriedade custou caro. Houve grande campanha
contra ela na sociedade e na imprensa da Bahia. Era vista como uma pessoa
alucinada, uma fanática.
A Arquidiocese, comprometida com os poderosos, conseguiu que
o Vaticano expulsasse Irmã Dulce da ordem religiosa à qual estava vinculada.
Veio uma ordem formal do Papa determinando isso. Maria Rita estava proibida de
continuar o trabalho social.
Mas ela permaneceu usando a roupa de freira. E levou consigo
outras irmãs, que abandonaram a instituição para continuar salvando os pobres.
O fato tinha diariamente grande cobertura dos jornais baianos, assustados com o
que viam.
Um dia, a Prefeitura mandou equipes ao bairro de Roma para
expulsar Irmã Dulce e seus desvalidos. Ela disse: “Vamos nos instalar no meio
da rua”.
Eram centenas de pessoas abandonadas. A expulsão foi sendo
adiada. O Hospital Santo Antônio está lá até hoje, agora reconhecido pelo
Vaticano como a obra de uma Santa.
Irmã Dulce venceu a tudo e a todos, com a proteção de Deus e
de Jesus (e de Santo Antônio) .
Atendimentos feitos
em diversas especialidades
O Hospital Santo Antônio oferece gratuitamente atendimento
médico, com especialização geriátrica, cirúrgica, hospital infantil, centro de
atendimento e tratamento de alcoolismo, clínica feminina, unidade de coleta e
transfusão de sangue, laboratórios e um centro de reabilitação e prevenção de
deficiências.
Irmã Dulce também criou o Centro Educacional Santo Antônio,
na cidade de Simões Filho, que abriga centenas de crianças de 3 a 17 anos. Durante
mais de cinquenta anos, ela deu exemplo de fé e dedicação ao mundo, falando
pouco e realizando muito. Tinha grande prestígio e sempre pressionou os
sucessivos governadores e prefeitos a olharem pelo povo.
Nenhum político recusava-se a atender um telefonema de Irmã
Dulce, que lidava com todos, de todos os partidos, sem discriminação nem
julgamentos. Fica no ar a frase que resume seu pensamento: “Miséria é a falta
de amor entre os homens”.
Ela dizia que o amor supera todos os obstáculos, todos os
sacrifícios. “Por mais que fizermos, tudo é pouco diante do que Deus faz por
nós.
Este depoimento
pessoal ajuda a conhecer a santa
Cresci no bairro de Roma, pertinho da Irmã Dulce. Na década
de 50, a pequena freira já era famosa por abrigar miseráveis no galinheiro do
convento. Foi o verdadeiro mito da minha infância, rivalizando com os
super-herois das histórias em quadrinho.
Vi muitas vezes ela nas ruas de Salvador – impecável no seu
hábito, falando bem baixinho, com um quase não-riso na boca.
Quando criança, ouvi os adultos falarem do incêndio de um
ônibus na Cidade Baixa de Salvador, onde morreram dezenas de passageiros.
Muitos escaparam graças a Irmã Dulce. Apoiada por outras
freirinhas frágeis, ela arriscou a vida, quebrando as janelas do ônibus com
tijolos e puxando as pessoas em fogo. Isso fortaleceu a sua imagem.
Nos primeiros anos de trabalho, a freira ia pessoalmente às
feiras e às ruas pedir doações, sempre usando a roupa pesada. O manto azul e
branco mantinha a cabeça coberta naquele calor baiano.
Nunca se separou do hábito de algodão grosso, nem mesmo
quando foi expulsa da Ordem religiosa por monstruosos bispos que dominavam a
Igreja Católica na Bahia (Dom Eugênio Sales é denunciado frontalmente no filme
“Irmã Dulce”).
Ela sofreu muito para se impor. Numa caminhada pela Feira de
Água de Meninos, Irmã Dulce aproximou-se de um vendedor enorme e grosseiro.
Ela estendeu o braço e pediu ajuda para os pobres. No filme
“Irmã Dulce” isso é bem mostrado: o cara encheu a boca de saliva e cuspiu forte
na pequena palma de mão da Santa.
Impassível, Irmã Dulce limpou a mão direita na cintura,
estendeu firme a mão esquerda e disse:
-Esta doação foi para mim. Agora, o que você vai dar para os
meus pobres?
Assim construiu um império divino.
Nunca faltou vaga no hospital da Irmã Dulce. Num dia de
muita agitação, aproximou-se um colaborador voluntário, aflito, e disse para a
superfreirinha: “Irmã, irmã, não cabe mais ninguém!”.
Resposta: “Ocupe o meu quarto” – e saiu andando
tranquilamente. Isso aconteceu diversas vezes.
Conheci irmã dulce no
armazém do meu pai
Na década de 60, meu pai tinha um grande armazém atacadista
na Cidade Baixa de Salvador. Irmã Dulce, ainda iniciante no seu ofício,
aparecia de repente por lá, numa Kombi velha. Vinha sempre acompanhada de dois
típicos negões baianos, bem fortes.
Os três entravam escondidos no armazém e saíam com cargas
pesadas, literalmente roubadas. Sacos de feijão ou de farinha. Ela tinha
preferência pelas caixas de leite Ninho, com 24 latas. Era um verdadeiro
assalto, assistido por mim algumas vezes.
Vi meu pai protestar, dizendo forte: “Irmã, assim você vai
me quebrar”. Já se esgueirando, de saída, ela gritou de longe: “Deus vai lhe
dar em dobro”. Deu mesmo, felicidade em dobro.
A freirinha de quase 1m40 continuou saqueando armazéns para
alimentar seus pobres. Enfrentava a ira dos comerciantes, que escondiam as
mercadorias mais valiosas.
Os negociantes não podiam reagir, porque ela já era a famosa
Irmã Dulce, que superou governos, desafiou a poderosa Igreja Católica e montou
um centro de atendimento para miseráveis.
Na década de 70, numa dessas investidas clandestinas, Irmã
Dulce viu no armazém a minha mãe Cecília. Ela era muito atraente (12 anos mais
nova do que meu pai).
A incrível freira interrompeu a fuga com os dois
carregadores. Chegando perto, perguntou com firmeza a meu pai: “Seu Agenor,
quem é esta moça bonita?” Sem dar intimidade, meio durão, meu pai respondeu:
“Esta é Cecília, minha mulher, mãe dos meus filhos”.
Ignorando a presença do dono do armazém, que a Irmã havia
enfrentado durante anos, pegou as mãos da jovem mãe e falou: “Cecília, você
está convidada para conhecer meu hospital. Faço questão de lhe mostrar
pessoalmente tudo o que fazemos pelos pobres”.
Agenor foi obrigado a visitar o Hospital Santo Antônio, no
bairro de Roma, em Salvador. A instituição ainda tinha instalações precárias.
Nessa noite, Irmã Dulce conduziu Cecília Riella pela mão, como se leva uma
criança.
Saíram as duas de ala em ala, vendo a miséria muito bem
abrigada, graças às “doações” de Agenor e de outros baianos quase ricos.
Num devido momento, Cecília foi conduzida a um lugar mais
reservado. Irmã Dulce mostrou-lhe uma grande cadeira de encosto e explicou: “É
aqui que eu durmo um pouquinho de noite” – e riu baixinho, sacudindo a roupa
branca e o manto, sempre impecáveis.
A freira enfrentou grave deficiência pulmonar durante mais
de 40 anos – e sobrevivia por milagre. Contou à minha mãe que quase não comia.
Se alimentava de pequenas porções (biscoitos, café com leite). Dava rápidas
cochiladas no cadeirão, pois ficava sufocada se deitasse em uma cama. Como
quase não dormia, passava as noites visitando os internos, a quem proporcionava
carinho físico: longos abraços, apertos de mão e palavras santas. Muitos
morreram abraçados com ela, a caminho de Deus.
O acordo do armazém
com a irmã dos pobres
Na visita ao Hospital, o pragmático Agenor Riella propôs um
pacto, para que Irmã Dulce deixasse de assaltar seu armazém (Fonseca, Moreira e
Cia. Ltda).
Negociaram de “homem pra homem”. Meu pai dispôs-se a doar
sacos de feijão de 60kg. Ela disse que já tinha feijão demais. E comentou: “O
senhor já comeu pão sem manteiga no café da manhã? Eu preciso de manteiga para
os meus pobres”.
A freira esperta escolheu este item de extrema necessidade,
de valor razoável, que meu pai passou a lhe doar constantemente. Algumas vezes
acompanhei Agenor, carregando pessoalmente uma lata de dez quilos de manteiga
Constelação, a mais cara da época.
Sem que meu pai soubesse, minha mãe passou a dar ajudas
variadas, às vezes pedindo doações a outras pessoas.
É uma história real, não mostrada no filme. Ajuda a entender
melhor esta Santa, que só podia ter surgido na sagrada Bahia de todos os santos
e de todos os orixás.
Irmã Dulce demonstra como o mundo sobrevive diante de tantos
desequilíbrios. Hoje, suas obras fazem mais de quatro milhões de atendimentos
por ano.
Nunca falta vaga num hospital de Irmã Dulce!
Nem vaga no seu coração eterno.
Comentário final: na sua imensa humildade, ela certamente
não quer ser chamada de Santa.
Continua sendo apenas a Irmã – uma grande irmã de 1m40.
RENATO RIELLA