Júlio Miragaya (*)
Na semana em que o Brasil completa 200 anos como nação “independente”, o processo eleitoral em curso tem escancarado as mazelas da sociedade brasileira, esgarçando feridas expostas há séculos, tendo como pano de fundo a enorme desigualdade social que assola o país. Assistimos a um verdadeiro desfile de preconceitos contra mulheres, negros, comunidade LGBT, religiosos de matrizes africanas, favelados etc.
Bolsonaro, em entrevista ao Flow Podcast, insinuou que a varíola dos macacos está relacionada à homossexualidade e, em evento evangélico, pregou que “Joãozinho seja Joãozinho a vida toda”. No debate na Band, em arroubo misógino contra a jornalista Vera Magalhães, a chamou de mentirosa, vergonha para o jornalismo e atacou: “você dorme pensando em mim”.
Já Michele Bolsonaro, sua mulher, criticou a participação de Lula em celebração de umbanda na Assembleia Legislativa da Bahia, endossando afirmações do pastor e deputado Marcos Feliciano, de que “Lula tem pacto com o diabo”.
Mas o rosário de preconceitos não se resume ao clã Bolsonaro. Sílvio Mendes, candidato do União Brasil ao governo do Piauí, assim se referiu a Kátya Dangeles, jornalista da TV Meio Norte, que o entrevistava: “Você é quase negra na pele, mas é uma pessoa inteligente”.
Ciro Gomes, candidato à presidência, também andou destilando preconceito. Em palestra a empresários da FIRJAN, enebriado ao ser bajulado por um ex-presidente da entidade (“o senhor nos deu uma aula”), respondeu: “Na verdade, foi um comício pra gente preparada. Imagine explicar isso na favela. É serviço pesado”.
Para além dos preconceitos mais cretinos, há um festival de hipocrisia. Em suas redes, Bolsonaro retoma a ladainha da corrupção contra Lula e o PT, citando o apartamento do Guarujá e o sítio de Atibaia, no momento em que é revelado que sua famiglia negociou, desde 1990, 107 imóveis, sendo metade em dinheiro vivo, incluídas as mansões dos filhos 01 e 04.
Já Felipe D’Ávila, o “riquinho”, com fortuna de R$ 24 milhões, candidato de um partido autodenominado “Novo”, faz a defesa do “velho” Estado Mínimo, modelo dominante no século XIX e início do século XX.
Por fim, Simone Tebet e Soraya Thronicke, duas representantes da oligarquia sul-matogrossense, no mesmo debate na Band, buscaram maquiar suas falas com um verniz social (e feminista), contrastante com suas carreiras políticas associadas às pautas conservadoras.
Simone tentou se mostrar como defensora dos direitos sociais, omitindo que, como proprietária rural, defendeu a suspensão da demarcação de terras indígenas em seu estado e, seu marido, deputado estadual, é atuante na CPI contra o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Ademais, ela votou pela reforma trabalhista, reforma previdenciária e a favor do golpe contra Dilma.
Soraya, uma autêntica “barbie”, se notabilizou no debate quando afirmou que “ninguém viu o ‘mundo maravilhoso’ que Lula disse ter sido seu governo, de 2003 a 2010”, ao que o ex-presidente respondeu que “você pode não ter visto, mas tua empregada viu, teu motorista viu, teu jardineiro viu”, deixando-a boquiaberta.
Ela apresenta como vice o economista Marcos Cintra, um aloprado que há trinta anos sugere extinguir todos os impostos, criando um único, com alíquota de 1,26% sobre movimentação financeira. Algo que só ele, e agora a “barbie do cerrado” acreditam.
Se na comemoração do centenário da “independência”, em 1922, tivemos a semana de Arte Moderna, pontuada por Oswald e Mário de Andrade, Villa Lobos, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, este bicentenário ficará marcado por um processo eleitoral recheado de preconceitos e hipocrisias, estrelado por Bolsonaro, Soraya e Cia.
Que seja um momento de ruptura, marcando o início de um século de esperança para nosso povo!
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia