Você está diante de uma grande reportagem do jornalista Eduardo Monteiro, exclusiva para o Brasília Capital. Nos próximos dias, você vai acompanhar uma série com o desenrolar dos acontecimentos sobre a história e a briga pelo espólio da escritora Maria Carolina de Jesus, que neste domingo, 14 de março de 2021, completaria 107 anos do nascimento. Menina negra e pobre (uma redundância para o Brasil, especialmente no início do século passado) nascida na área rural da cidade de Sacramento – MG, filha de pais analfabetos, favelada, de pouco letramento, autodidata, Carolina é autora de uma dos maiores fenômenos literários do século XX: Quarto de Despejo: Diário de uma Favela. A obra mudou a vida dela e continua sendo objeto de discórdia entre seus herdeiros até hoje.
Quarto de Despejo é uma obra densa. Foi escrita a partir de um diário no qual Carolina descrevia o seu cotidiano e o da comunidade onde vivia. As agruras, os sofrimentos e a presença da fome e da solidão, segundo relatos, parecem ser um legado nefasto. Algo como um carma a ser carregado por ela e por seus descendentes por várias gerações.
Há informação de que herdeiras de Carolina de Jesus (netas) estariam sem receber os direitos autorais referentes às obras literárias da avó. E elas estariam passando por sérias dificuldades financeiras – uma delas, inclusive, passando por privações e até fome.
Carolina Maria de Jesus morreu em 13 de fevereiro de 1977, em seu sítio, no bairro de Cipó, em Parelheiros (São Paulo), vítima de uma crise de insuficiência respiratória aguda. Bronquite asmática, conforme o Atestado de Óbito.
Consta que, ao longo da vida, Carolina teve diversos relacionamentos, embora não tenha se casado. Foi mãe de três filhos com pais diferentes, todos nascidos no estado de São Paulo: João José (não deixou herdeiros), nascido em 1948 e morto em 1977, poucos meses após a mãe; José Carlos, que nasceu em 1949 e morreu atropelado em 2016 (deixou quatro filhas); e Vera Eunice , nascida em 1953 (tem quatro filhos naturais e um adotivo).
O Espólio
Após a morte de Carolina de Jesus, não foi aberto o inventário. A filha Vera Eunice conta: “Eu não abri esse porque eu não entendia muito e também nem tinha dinheiro (…). Só que agora foi aberto. Eu abri, e aí a advogada delas entrou e pediu o documento de todo mundo (…). Agora elas entraram, querem que eu dê os documentos. Só que ela (a neta Adriana) quer ser a inventariante da Carolina. Eu sou a herdeira direta…”.
José Carlos de Jesus morreu atropelado em São Paulo no dia 28 de maio de 2016. Logo após o acidente, suas filhas começaram a buscar seus direitos. Em agosto daquele ano, por decisão judicial, Adriana Carvalho de Jesus foi nomeada inventariante do espólio do pai.
Foi então que surgiu a necessidade de buscar o inventário de Carolina de Jesus. Após saber de sua inexistência, a advogada das netas, Luana Ramoni, nos informou que tentou, sem êxito, conseguir com Vera Eunice os documentos sobre Carolina e seu Ativo Autoral. Iniciou-se aí um longo caminho que segue até hoje.
No dia 1º de fevereiro de 2019, Vera Eunice deu entrada na Justiça com uma Ação de Inventário Negativa. Na prática, ela requeria que fosse aberto o respectivo inventário; que fosse nomeada a inventariante (uma vez que o outro filho de Carolina, José Carlos de Jesus, havia falecido); que o juiz expedisse uma Certidão de Inventariança (pois tinha sido procurada por uma empresa que queria produzir um longa-metragem sobre a história de Carolina de Jesus e precisava da certidão para firmar o contrato); e requereu ainda, com sucesso, o benefício da Justiça Gratuita.
Há dois fatos curiosos a se observar: se Vera Eunice tinha a prerrogativa de solicitar o benefício da Gratuidade Judiciária (quando a pessoa apresenta Atestado de Pobreza), e por que não requereu a abertura do Inventário antes? Questionada sobre isso, ela disse: “nunca assinaria um Atestado de Pobreza, pois, para isso, teria dinheiro para pagar”. Mas assinou. Está nos autos do processo; os números de RG 23.055.580-9 e CPF 135 796 488-96, informados na petição inicial como sendo de Carolina de Jesus são, na verdade de outra Carolina, residente em São Paulo.
A Decisão foi expedida no dia 5 de fevereiro do mesmo ano. No documento, o juiz determinava o prazo de 20 dias para que a inventariante juntasse aos autos do Processo 1004436-18.2019.8.26.0002 a devida documentação. Transcorrido o prazo, sem que Vera Eunice apresentasse os documentos requeridos, o processo foi extinto em 10 de maio de 2019.
O juiz da 11ª Vara da Família e Sucessões, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu, no dia 14 de julho de 2020, nomear Adriana Carvalho de Jesus (neta mais nova de Carolina de Jesus), como inventariante, no processo 1032942-67.2020.8.26.0002.
Além do sítio em Parelheiros, que Vera garante ter comprado a parte de José Carlos (as netas negam, afirmando que ela não tem os documentos); dos direitos autorais devidos por editoras do Brasil e do exterior, outros bens patrimoniais e fontes de receita podem estar no rol da partilha tais como: direitos autorias do possível longa-metragem a ser produzido; diretos autorais de músicas (marchas de carnaval); eventuais textos inéditos; objetos pessoais; e outros supostos ativos correlatos.
O Livro
Apesar de o livro Quarto de Despejo ter sido traduzido para 16 idiomas e supostamente vendido em 40 países, Vera Eunice informou que só recebeu, e ainda recebe, direitos autorais vindos dos Estados Unidos.
Segundo ela, são três as editoras brasileiras que têm contratos para publicação das obras de Carolina de Jesus; e essas pagam a ela “normalmente, e se as netas não recebem a parte delas deve ser por conta do inventário que ainda não saiu”.
Para concluir, negou que tenha outra fonte de renda qualquer correlata ao ativo autoral de Carolina de Jesus.
Vera Eunice tem 67 anos, é professora aposentada pelo Estado e continua trabalhando para o município. Ela tem uma agenda bem concorrida de palestras, entrevistas, eventos (no momento, basicamente virtuais). Mora no bairro de Interlagos, mas nega veementemente que resida em apartamento de luxo e que tenha carro de alto valor, como lhe foi atribuído.
Rechaçou, também, que tenha cometido maus tratos com qualquer das sobrinhas, embora admita que “bati até nos meus filhos, mas naquele tempo as coisas eram diferentes”, e que hoje , como pedagoga, agiria de forma diferente.
Na Rua da Amargura
De acordo com informação consensual dos familiares, José Carlos era alcoólatra, vivia com a esposa Joana e as filhas no sítio comprado por Carolina, em Parelheiros. As coisas começaram a se complicar após Joana fugir com o melhor amigo de José Carlos, Galdino, mais conhecido como Cueca. Inconformado, José Carlos chegou a comprar uma arma para se vingar da ex-esposa. Mas não concluiu seu intento.
Desiludido, José Carlos se entregou de vez à bebida e passou a viver de forma errante, inclusive se tornando, por longo tempo, morador de rua, quando ganhou o apelido de Botina. Inicialmente, José Carlos até tentou viver com todas as filhas, junto com a então companheira Luzia, mas não deu certo. A solução que encontrou foi entregar as filhas para serem cuidadas por parentes e amigos.
Crueldade
A partir daqui, a história ganha ares de crueldade, com os relatos das netas sobre maus tratos, privação de alimentação e até espancamentos sofridos em algumas das muitas casas por onde passaram, pois, por motivos diversos, todas viveram de forma meio nômade na infância e juventude. Além das humilhações e condições subhumanas que tiveram, e algumas ainda têm que suportar para sobreviver.
José Carlos, segundo relatos, teria herdado a fleuma autodidata da mãe, tanto no gosto pela literatura e pela música, como no fascínio por línguas estrangeiras. Há informações de que se correspondia com pessoas no exterior, em língua inglesa, alemã e espanhola, e que teria adquirido esse conhecimento por si mesmo.
Embora com todo esse drama e sofrimento, as filhas são unânimes em dizer que adoram o pai, a quem se referem como uma pessoa carinhosa e sensível. São elas: Liliam (48), vive em Jaraguá do Sul (SC), é solteira, tem três filhos e ganha a vida como faxineira; Eliana (46), solteira, mãe de quatro filhos, mora em Parelheiros (SP) e faz serviços gerais esporádicos; Elisa (45) é casada, tem quatro filhos e mora em Campo Grande (SP); e Adriana (40), solteira, estagiária, mãe de três filhos, mora em São José dos Campos (SP).
Há uma disputa evidente entre elas. E não é só por dinheiro ou patrimônio, mas por visibilidade. Por mais que se queira censurar ou criticar atitudes, comportamentos etc., não há como duvidar da necessidade e da legitimidade das lutas das netas de Carolina de Jesus por acesso ao que lhes é de direito, principalmente a cidadania.
Quem Foi Carolina de Jesus
Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento–MG, estudou só até o segundo ano do Ensino Fundamental – o suficiente para aprender a ler, escrever e despertar a paixão pela leitura.
Morou boa parte de sua vida na favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, onde construiu seu próprio barraco com pedaços de madeira, lata e papelão, trabalhando como catadora de material reciclável para sustentar a si e aos três filhos.
A paixão pela leitura ajudou a aflorar o seu talento literário, que era transformado em textos e poesias carregados de realismo; palavras áridas e verdadeiras, resultado da vida cruel e do castigo da fome.
O sonho inabalável em ser escritora – por ironia do destino – se tornou realidade quase como um conto de fadas. Os cadernos com páginas ainda em branco, que ela recolhia pelas ruas, eram os fiéis depositários de sua obra. Um trabalho árduo – uma verdadeira odisseia – realizado muitas vezes sob luz de vela, fome e aflição; até ser descoberto, por acaso, em 1958, pelo jornalista Audálio Dantas.
Em 1960, com a publicação de seu diário, sob o título de Quarto de Despejo, a vida de Carolina de Jesus, literalmente, mudou da água para o vinho. A primeira edição de 10 mil exemplares esgotou-se em uma semana.
A partir daí, foram vendidas mais de um milhão de cópias, traduzidas para catorze línguas em 40 países. Foi a primeira obra que falou de favela, pela voz de quem nela vivia.
O sucesso do livro propiciou a Carolina a mudança para Santana, bairro de classe média, na Zona Norte de São Paulo. E a transformação não parou por aí. Ela tornou-se, repentinamente, uma celebridade festejada por público e crítica e cortejada por políticos, empresários, artistas e escritores do calibre de Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, entre muitos outros.
A lua de mel com a fama e a prosperidade foi breve, levada por diversos fatores como a inabilidade em gerir seu patrimônio, escolhas equivocadas e falta de estrutura empresarial.
Mesmo assim, ela ainda publicou outras obras em vida, sem obter nem sombra do sucesso de Quarto de Despejo.
Carolina mudou-se para um sítio em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, em busca de paz e tranquilidade para escrever, tentando resgatar sua infância na área rural.
A obra da autodidata Carolina de Jesus a coloca como uma das primeiras escritoras negras e uma das mais importantes do País. Uma figura icônica, referência em temas e lutas pelos direitos da mulher, da igualdade racial, e em defesa dos oprimidos.
Seu legado a tornou uma das escritoras mais estudadas e pesquisadas até hoje, além de tema para diversos livros, teses, documentários e filmes.
· Quarto de Despejo (1960)
· Casa de Alvenaria (1961)
· Pedaços de Fome (1963)
· Provérbios (1963)
Obras póstumas
· Diário de Bitita (1977)
· Um Brasil para Brasileiros (1982)
· Meu Estranho Diário (1996)
· Antologia Pessoal (1996)
· Onde Estais Felicidade (2014)
· Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros escritos (2018)
Curiosidade sobre o livro
Segundo Fernando Marinho, “o livro teve grande repercussão por ser a primeira obra sobre a favela feita por um olhar imanente desse local, o que trouxe à tona várias discussões sobre a qualidade de vida das pessoas que ali residem, discussões essas que não aconteciam no contexto dos anos 1960. O título do livro é atribuído à imagem que Carolina tem da favela enquanto um quarto de despejo, pois tanto ela quanto tantos outros que ali
habitavam haviam parado ali por ordem do governo, que recolhia os moradores de rua e os despejava nessas áreas, que, futuramente, viriam a tornar-se as favelas”.