A tutela militar sobre a sociedade civil sempre foi um componente presente na história do Brasil. Iniciou-se em 15 de novembro de 1889 com o golpe político-militar que proclamou a República, quando os militares depuseram e expulsaram do País um dos mais honrados e sábios governantes que tivemos – Dom Pedro II.
A partir daí, os militares sempre estiveram convictos de que tinham herdado do Imperador o poder moderador, o qual lhes permitia a tutela sobre a sociedade, a política e as instituições. Esse pensamento, infelizmente, está arraigado na nossa formação social, econômica, cultural e política, em detrimento de uma formação democrática. Jamais se fez o menor esforço para a inclusão do povo na democracia, pelo que ele nunca teve condições para defender as suas liberdades individuais, civis, sociais e políticas.
Não se trata de uma questão pontual, restrita ao governo Bolsonaro. É algo permanente. A interferência militar na política se apresenta como um dos maiores problemas históricos da república e da democracia brasileira.
Nenhuma democracia sobrevive ao ativismo político dos militares. É importante observar o ensinamento universal e atemporal: chefias de Estado, ou enquadram os que são responsáveis pelo uso dos aparatos de força ou serão por eles enquadrados.
A partir da derrocada da ditadura, quando o povo manifestou seu repúdio ao governo militar, os membros das Forças Armadas perseguiram o objetivo de chegar novamente ao comando do País, via eleições.
Beneficiaram-se e se fortaleceram com a degradação da classe política. Ao que tudo indica, o objetivo parece ser poderem se apresentar como os únicos competentes e incorruptíveis, os “restauradores da ordem”, o que está longe da verdade.
Alcançaram o anseio de chegar novamente ao poder apoiando massivamente Bolsonaro na eleição de 2018. Uma situação incompreensível, vez que Bolsonaro foi expulso do Exército, sempre foi um político medíocre e era, ele e sua família, envolvido com as milícias. E isso os militares sabiam. Ou o sistema de inteligência deles é muito incompetente.
Bolsonaro montou o governo mais militarizado da nossa história. Nem no período da ditadura tivemos tantos militares, da ativa e da reserva, exercendo cargos no governo federal. Em 2021, o Tribunal de Contas da União registrou 6.175 militares ocupando cargos no governo federal.
E o que de bom fizeram? Contribuíram para que o governo Bolsonaro fosse avaliado como o pior e mais corrupto da história do Brasil. Tanto é verdade que, apesar de todos os recursos financeiros (orçamento secreto), materiais e humanos do Estado colocados nas mãos dos seus apoiadores a serviço de sua reeleição, não conseguiu o seu objetivo. Afinal, Deus demonstrou que é brasileiro, pois o Brasil não resistiria a mais um ciclo de quatro anos com Bolsonaro.
O aumento da corrupção na gestão Bolsonaro foi constatado por várias instituições, como Transparência Internacional, Organized Crime and Corruption Reporting Project e Banco Mundial, que apontaram o desmonte da estrutura legal de combate à corrupção como a principal causa.
Inconformados com a derrota, os militares fomentaram os atos antidemocráticos que culminaram na invasão e vandalismo das sedes dos Três Poderes da República. Queriam, sem dúvida, que o caos resultasse no golpe final contra a democracia.
O presidente Lula, após os atos golpistas de 8 de janeiro, agiu corretamente ao não convocar os militares para contornar a situação, demonstrando que não tinha mais confiança neles; ao designar um civil como interventor da Segurança Pública do Distrito Federal; ao declarar que as Forças Armadas não são um poder moderador; e ao trocar o comandante do Exército.
Mas isso são ações pontuais, que seguramente não vão dissuadir os militares a abandonar o pensamento de que são um poder moderador e que têm a missão, quase divina, de tutelar a sociedade civil.
Será preciso muito mais: estratégia bem definida, metas traçadas, paciência e, sobretudo, perseverança cotidiana. A oportunidade que se apresenta é muito favorável para se iniciar a mudança nas Forças Armadas, de forma a afastar em definitivo da vida nacional o perigo de golpes militares.
O desgaste dos militares pelo envolvimento ou omissão nos atos golpistas de 8 de janeiro e no mar de lama que está sendo desnudado pelas recentes investigações enseja essa ação. Para isso, o governo Lula deverá apoiar-se na força dos movimentos sociais e de todos os setores democráticos e progressistas da sociedade, convocando uma conferência nacional para oferecer sugestões e diretrizes para a Defesa Nacional, com a participação de lideranças políticas, cientistas, empresários, diplomatas, jornalistas, procuradores, representantes dos povos originários e líderes comunitários.
É hora de o governo ter coragem de agir para afastar de vez qualquer pensamento sobre tutela militar no Brasil e passarmos a concretizar a nossa democracia.