Aldemario Araujo Castro (*)
Existe uma explicação fácil, comum e equivocada para a atuação cada vez mais intensa do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Afirma-se que o Judiciário ocupa, de forma indevida, um espaço deixado pela inércia do Legislativo. Ou seja, na ausência de leis sobre determinados assuntos, a regulamentação termina por ser construída no âmbito da atividade judicial.
Porém, a verdadeira razão para a atuação mais destacada do Judiciário nos últimos tempos decorre de uma profunda mudança do paradigma de compreensão do funcionamento da ordem jurídica. Até a primeira metade do século XX, quando dominantes os constitucionalismos liberal e social, admitia-se uma supremacia meramente formal da Constituição. Assim, os casos e problemas da vida em sociedade eram resolvidos pela aplicação direta das leis infraconstitucionais.
As Constituições, seus valores e princípios fundantes, não experimentavam aplicação direta e funcionavam como meros vetores ou diretrizes a serem incorporados pelo legislador na construção das regras legais. Isto sofreu radical transformação a partir da segunda metade do século XX. As Constituições ganharam uma supremacia material ou axiológica antes inexistente.
A principal consequência dessa transformação no campo jurídico consiste justamente na possibilidade, e necessidade, de aplicação direta da Constituição, notadamente seus valores e princípios, independentemente de intermediação legislativa (de uma regra específica posta na legislação infraconstitucional).
O “ativismo judicial”, compreendido no sentido da aplicação direta dos valores e princípios constitucionais pelo Judiciário sem a imprescindível intermediação do Legislativo, é um fenômeno necessário e essencialmente positivo, afastados os desvios e os excessos. São concretizados, por essa via, direitos fundamentais importantíssimos realizadores da dignidade da pessoa humana.
“O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, conforme define a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Trata-se de construção internacionalmente consagrada, inclusive como a base mais relevante do Estado Democrático de Direito no Brasil (art. 1º, caput e inciso III, da Constituição de 1988).
Nessa linha, o papel contramajoritário do STF é lembrado e afirmado. Esse viés é essencial para a preservação do Estado Democrático de Direito e para evitar que os direitos individuais e as liberdades fundamentais sejam prejudicados pela vontade de uma maioria ocasionalmente formada.
Afinal, não é incomum que interesses mesquinhos, equivocados e reacionários sejam mobilizados, num contexto pontual, contra conquistas civilizatórias que consumiram décadas ou séculos de intensa luta social.
O emblemático julgamento da ADIn nº 2797, pelo próprio STF, mostra como sua função de guardião da Constituição não pode ser afrontada. Eis um trecho da ementa de referida decisão:
“3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior.
“4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do ST – guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames”.
Não custa transcrever o art. 102 do texto normativo posicionado no ápice da ordem jurídica brasileira. Afirmou o constituinte originário: “Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição”. Assim, as maiorias circunstanciais, representadas ou não no Parlamento, não podem afrontar a dignidade da pessoa humana materializada no exercício efetivo de um conjunto básico de direitos fundamentais.
Uma pretensão dessa natureza esbarra na supremacia da Constituição guardada, por expressa definição do Poder Constituinte Originário, sem desvios ou excessos, pelo Supremo. Portanto, o cenário atual não se apresenta como uma simples disputa por espaços de poder entre o Legislativo e o Judiciário. O que está em jogo é o progresso civilizatório a partir da afirmação, ou rejeição, de seus valores e princípios mais nobres.
(*) Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional