Júlio Miragaya (*)
Há pouco mais de 400 anos, a Inglaterra vivia o período de transição do sistema feudal para o mercantil (embrião do capitalismo), marcado pelo processo de expulsão dos camponeses de suas terras comunitárias (expropriadas pela nobreza). Isto gerou centenas de milhares de miseráveis vagando pelos campos e pelas incipientes cidades à procura de comida e algum abrigo.
Visando coibir a mendicância, a monarquia instituiu, em 1601,Lei dos Pobres (PoorLaws), estabelecendo punições para os pedintes, podendo, em casos de reincidência, levar à execução. A lei foi da maior importância para o desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra. Ao punir fortemente a mendicância, obrigava os ex-camponeses a aceitarem os mais vis salários nas nascentes fábricas inglesas. Após muitas revoltas populares eclodirem em todo o país, a lei foi reformulada em 1834.
Passados quatro séculos, o contingente de miseráveis no mundo ainda é assombroso. Para não discorrermos sobre situações extremas nos continentes africano e asiático, fiquemos no Brasil, onde temos 33 milhões de pessoas passando fome, centenas de milhares delas morando nas ruas. Mas o sistema capitalista, paralelamente a tanta miséria, gerou também muita riqueza,cada vez mais concentrada nas mãos de poucos.
A Oxfam Brasil, respeitada organização que luta por uma sociedade mais justa e equilibrada, fez uma pesquisa nacional, em setembro deste ano, na qual apurou que nada menos de 85% da população adulta brasileira (portanto, eleitores) creem que o progresso do Brasil depende da redução da desigualdade entre ricos e pobres, que o Estado tem que assumir tal atribuição, e que isto deve ser feito por meio de uma maior tributação sobre os mais ricos.
Quando se fala em 85% da população, isto engloba – além dos milhões que estão na extrema pobreza – a ampla maioria da população, que está “se virando” em trabalhos precários e, mesmo os que estão “no luxo” do emprego formal, mas vivendo com renda domiciliar de até parcos três salários mínimos.
O resultado da pesquisa traz animação para os que lutam por uma sociedade mais justa, mas é enganoso, pois tal animação subitamente se dissipa ao observarmos os resultados do primeiro turno da eleição presidencial. Nada menos que 51 milhões de brasileiros (43% do eleitorado que compareceu às urnas), contingentepraticamente igual ao observado em 2018 (49 milhões, ou 46%), ao votarem em Bolsonaro optaram pelo oposto ao apurado pela pesquisa da Oxfam.
Sim, a opção por Bolsonaro significa a mais absoluta repugnância aos menos favorecidos da sociedade. Para grande parte de seus eleitores, que se danem os pobres e miseráveis que não tiveram competência para vencer na vida; os negros ou as mulheres – que são ampla maioria entre os mais pobres – que corram atrás da prosperidadematerial; que os indígenas não atrapalhem quem quer explorar as imensas riquezas existentes em suas terras; que esta conversa de exploração do trabalhador é coisa de comunista. E por aí vai.
Mas há uma estreita maioria, os que votaram em Lula, em Ciro e Simone, que não pensam assim. Mas mesmo esses demonstram uma certa apatia ante tamanha disparidade de renda, riqueza e oportunidades em nosso país. Desejam uma sociedade menos desigual, mas poucos se dispõem a lutar para que isto aconteça.
A contradição maior da sociedade entre ricos e pobres, entre classe trabalhadora e burguesia, deliberada ou inconscientemente, é cada vez mais secundarizada. Temos hoje uma sociedade, parte doente, parte anestesiada.
Como disse Tim Maia: “Estranho país o Brasil, onde cafetão se apaixona e pobre vota em rico”.
Que o efeito da anestesia passe até 30 de outubro!
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan e do Conselho Federal de Economia