Belo Horizonte — A expectativa do que virá primeiro, ‘ma-má’ ou ‘pa-pá’, é geralmente descoberta no primeiro ano de vida do bebê. No entanto, para algumas famílias, essa espera é longa e, em muitos casos, tida como um dado da realidade da vida da criança. Meninos e meninas diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), os que têm síndrome de Down ou qualquer outra síndrome genética são vistos como crianças que vão mesmo demorar a falar. Mas essa não deveria nem poderia ser uma certeza. Em alguns casos, esses diagnósticos estão associados à apraxia de fala infantil (AFI), um problema de ordem neurológica, que, sim, dificulta o desenvolvimento da fala, mas pode ser solucionado com o tratamento adequado. No Brasil, o assunto é desconhecido não apenas da população, mas dos profissionais de saúde.
Falar é natural para a maioria dos seres humanos e, por isso, quase ninguém pensa sobre o quanto é uma ação sofisticada do corpo humano e que depende de vários fatores. Fonoaudióloga clínica, doutora em ciências clínicas e professora da PUC Minas, Carla Menezes explica que a AFI é uma dificuldade de solucionar os movimentos responsáveis pela produção da fala e que são organizados pelo sistema nervoso central. “É um distúrbio neurológico que afeta a produção motora dos sons da fala. Para falar ‘bola’, por exemplo, precisamos de força para encontrar os lábios e também de subir a língua para pronunciar o ‘l’. O cérebro é o responsável por essa programação, mas a alteração neurológica das crianças com AFI impede que essa programação se dê forma espontânea”, afirma.
Fonoaudióloga e especialista em síndrome de Down, Cinthia Coimbra de Azevedo diz que como a apraxia é uma alteração de planejamento motor dos sons da fala, qualquer criança pode ter o transtorno. No entanto, a AFI é mais comum em crianças com alguma síndrome ou TEA. “Para que possamos produzir uma simples vogal, o cérebro tem que gerar uma programação de quais e como os músculos serão usados. Quando vamos falar uma palavra dissílaba, trissílaba ou frases, a sequência de movimentos fica cada vez maior. E, por isso, o planejamento é mais refinado. Muitas crianças com AFI apresentam uma fala muito embolada e difícil de entender”, salienta.
Dados da literatura científica norte-americana estimam que a incidência da AFI varia entre 0,1% e 1% de todas as crianças dos Estados Unidos. Em 2007, a American Speech-Language-Hearing Association (ASHA) criou o termo apraxia de fala infantil para que as crianças com esse transtorno fossem diagnosticadas e reabilitadas. Mas, por aqui, essa é ainda uma realidade distante: quase não se tem, em português, artigo científico sobre o tema, e a AFI não é sequer apresentada nas faculdades brasileiras. “Já são nove anos de conhecimento sistematizado, tempo suficiente para que os fonoaudiólogos do Brasil conhecessem e oferecessem aos pacientes a metodologia de tratamento desenvolvida especificamente para a AFI. Mas isso não acontece”, afirma Cinthia Coimbra de Azevedo.
Peregrinação
A pedagoga Marcela Bracarense, 35 anos, mãe de Augusto, 5, enfrentou uma jornada até chegar ao diagnóstico de AFI. Isso porque o menino tem uma síndrome genética ainda em estudo e o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), sempre fdados como justificativas para não conseguir se comunicar. Desde os 7 meses, Gustavo está em tratamento fonoaudiológico. “Sempre busquei, com muita determinação, o diagnóstico do meu filho, para oferecer os tratamentos e abordagens eficientes para suas dificuldades. Durante cinco anos, peregrinamos em consultórios de fonoaudiólogos, neurologistas e pediatras”, relata.
Nesse tempo, o garoto nunca foi tratado por metodologias específicas. “Foi um alívio quando ele foi finalmente diagnosticado e sentir que receberia uma abordagem específica”, conta Marcela.
O diagnóstico de AFI, que só chegou no meio do segundo semestre de 2015, tem sido positivo para a vida do garoto. “Hoje, ele se sente muito importante e feliz em conseguir falar para a cachorra ‘deita’”, conta a mãe. Marcela e o filho estão treinando uma golden retriever para ser a cachorra de assistência de Augusto. A pedagoga conta que pediu ao filho para escolher o nome e o garoto batizou a cadela de Buna. “Na verdade, ele queria que fosse Bruna, mas como ainda não consegue executar o ‘bru’ perguntei a ele se poderia Buna e assim foi.”
É importante dizer que a apraxia não é uma doença e não tem relação com inteligência. A criança entende tudo, porém, não consegue falar. Para o diagnóstico, o desenvolvimento da criança como um todo é avaliado, de acordo com Cinthia Azevedo.