Anna Ribeiro (*)
Os vidros estilhaçados no asfalto, o barulho do Corpo de Bombeiros, o corpo estirado no chão. Tentando identificar a extensão do estrago, lá estava eu. Na verdade, não estava estirada no asfalto. Era no sofá mesmo.
Mas a sensação era de que havia sofrido um acidente, uma colisão, uma quase morte. Quando um amor termina é assim. Terminar um amor é uma catástrofe. Sobra quase nada. E o pouco que sobra é híbrido. Meio eu, meio ele.
No cenário da sala, meu corpo estirado. Pálida, parecendo um filme de terror de quinta categoria. O que pode ser pior? Eis aí uma pergunta que nunca deve ser feita. Sempre é possível cavar o chão e descer um pouco mais.
Em uma das mãos, o copo de uísque; na outra o controle remoto. Entre um gole e outro, você lembra que a senha da Netflix era compartilhada e é você que detém o “poder” de mudar essa senha e ficar com a assinatura só para você. No fim de contas, é você quem paga mesmo!
Seria egoísmo? Desespero? Sentiria pena? Afinal, outras pessoas que não têm nada a ver com o fim assistem filmes e séries do lado de lá também. Pessoas que você ama e amará para sempre. E as horas vão passando. O gelo do uísque já derreteu, o drama da TV acabou.
Mas o seu só está começando. O cheiro dele na almofada do sofá, a falta da voz, a saudade de discutir quem comanda o controle. Agora você doaria o controle, a TV, o melhor lugar do sofá. Qualquer coisa só para sentir aquela respiração do seu lado.
Estou ficando mais decadente que um dramalhão mexicano. Alguma dignidade, por favor! Manter a senha compartilhada é como manter um laço invisível e de certo modo alimentar uma falsa esperança de reatar o que não tem mais volta de jeito nenhum.
Nada de meias verdades, nada pela metade, nada no diminutivo. Nada menos do que eu mereço, nada menos do que está traçado na palma da minha mão. Nada menos do que é meu por direito, por conquista, por verdade, por amor, pela soberania sobre meu corpo e minhas ações.
Mudei a senha! E viva a liberdade!