No domingo, 7 de abril de 2024, é celebrado o centenário da chamada “Resposta Histórica”. Trata-se da famosa resposta do Club de Regatas Vasco da Gama (CRVG), em 1924, à carta da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA) exigindo que o clube dispensasse 12 de seus atletas que eram trabalhadores braçais (maioria negros e analfabetos), por não exercerem profissão que estivesse “de acordo com o nível social e moral exigido pelo esporte”, o que foi categoricamente negado pela diretoria Cruzmaltina.
Trato aqui deste fato histórico pela razão de transcender, em muito, o mundo do futebol. A “Resposta Histórica” se tornou um marco na luta contra o racismo e o preconceito na sociedade carioca e brasileira. Para melhor compreensão da situação, é importante conhecer a realidade da cidade do Rio de Janeiro, capital da República e principal cidade brasileira no final do século XIX.
O CRVG foi fundado em agosto de 1898, pouco depois da fundação do Club de Regatas Botafogo (1894) e do Clube de Regatas do Flamengo (1895). Pode-se observar que todos são clubes de regatas, pois na virada do século XIX para o XX, o remo era o esporte mais popular no Rio. O Fluminense Futebol Clube surgiu em 1902, já como clube de futebol e logo Botafogo e Flamengo formaram suas equipes de futebol, que no início do século XX já ultrapassara o remo como esporte mais popular.
E foi no remo que o duplo preconceito observado na sociedade (racismo e antilusitanismo) primeiramente se manifestou. Após a vitória do Vasco em 1904 na prova clássica Ferrocarril – Jardim Botânico, a Federação Brasileira das Sociedades do Remo (FBSR) deliberou que ficavam proibidos de competir “os quer exercem qualquer profissão que não esteja de acordo com o nível social e moral em que deve ser mantido o esporte náutico”.
E listava essas profissões: empregados ou sócios de bares, botequins, bilhares, armazéns de secos e molhados, padarias, charutarias, barbearias etc e contínuos ou serventes de escritórios, consultórios, bancos e repartições públicas. Mas empresários, médicos, engenheiros e advogados estavam livres para a prática do remo.
A resposta do Vasco veio com o bicampeonato carioca de remo em 1905/06. A “fiscalização” da FBSR se intensificou, com a exclusão de vários remadores do Vasco das competições. Mas o Vasco resistiu e, combatendo as regras preconceituosas, conseguiu derrubá-las e voltou a vencer, se sagrando tricampeão em 1912/14, depois campeão em 1919, 1921, 1924, hexacampeão em 1927/32, novamente hexa em 1934/39 e hexadecacampeão de 1944 a 1959.
Para entender melhor tal situação é importante saber como era o Rio de Janeiro na última década do século XIX. De acordo com o Censo Demográfico de 1890, a cidade do Rio de Janeiro era a maior cidade do Brasil, com 522.651 habitantes, sendo que 155.202 (29,7%) eram estrangeiros e, desse total, 106.461 (20,4%) eram portugueses que aqui chegaram basicamente entre 1870 e 1890.
Outros 161.203 (30,8%) eram brasileiros, filhos de pais e mães portugueses, perfazendo a colônia portuguesa 267 mil residentes no Rio, nada menos que 51,2% dos cariocas. Aos portugueses devem ser acrescentados os galegos, vindos da Galícia, província espanhola (que correspondiam a cerca de 80% dos 11 mil espanhóis que residiam na Capital), caso de meu avô.
Uma pequena parcela dos portugueses que migraram para o Rio veio com algum recurso financeiro e abriu comércio varejista (armazéns de secos e molhados, retalhos, padarias, bares e botequins) ou atacadista (concentrados na rua do Acre). Mas a imensa maioria dos migrantes eram jovens (14 a 30 anos) solteiros, vindos das miseráveis áreas rurais de Portugal, analfabetos e sem qualificação profissional, que aqui aportavam duplamente endividados (com os contratadores e com familiares em Portugal) e pejorativamente chamados pela elite de “sujos de tamancas”.
E o fluxo migratório continuou forte, pois nas décadas de 1890 e 1900, 93% dos 452 mil portugueses que emigraram, nada menos que 420,6 mil (93%) vieram para o Brasil, a maioria para o Rio de Janeiro.
Essa massa de imigrantes veio disputar o mercado de trabalho com os moradores mais pobres do Rio, que eram os negros, ex-escravizados e seus descendentes. Eram ocupações como as de caixeiros, balconistas, vendedores ambulantes, quitandeiros, operários nos diversos ramos da indústria, garrafeiros e carregadores de mercadorias em carrinhos de duas rodas puxados por um homem, chamados de “burros sem rabo”.
Os negros eram também numerosos na Capital da República. Em 1890, de acordo com o Censo Demográfico, cerca de 200 mil cariocas (38%) eram pretos ou pardos.
Se o fluxo migratório português gerou disputa pelo mercado de trabalho, gerou também uma grande proximidade entre negros e portugueses, que habitavam o mesmo espaço (área portuária, as nascentes favelas e bairros populares ao longo das vias férreas da Central e da Leopoldina onde iam sendo instaladas novas fábricas), frequentemente dividindo os mesmos cortiços, convivendo nos locais de trabalho e nos nascentes sindicatos operários.
Havia uma proximidade econômica, social e mesmo cultural entre os dois grupos. O racismo não vinha dos lusitanos, assim como o antilusitanismo não vinha dos negros. Ambos vinham da elite carioca. Se a maior parte dos associados do CRVG era da colônia portuguesa, um número expressivo era constituído por negros.
Não por acaso, Cândido José de Araújo, eleito presidente do clube em 1904, foi o primeiro presidente negro de um clube esportivo no Brasil. Assim como a Federação do Remo, a Liga Metropolitana de Sports Atléticos (LMSA), desde sua fundação em 1908, introduzira regras restritivas à participação de trabalhadores braçais e analfabetos (essencialmente negros e portugueses) nos torneios de futebol, com amplo apoio da mídia. Eram os chamados “indesejáveis do futebol”.
O Vasco adotou o futebol em 1915 e em 1916 se filiou à Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), que substituíra a LMSA, para disputar sua 3ª Divisão, tendo recebido vários jogadores do Sport Clube Lusitânia. Após quatro anos, o Vasco obteve seu primeiro título em 1920, o da 3ª Divisão.
Em 1922, foi campeão da Série B com os famosos “Camisas Negras” e em 1923 disputou a 1ª divisão do futebol carioca, sagrando-se campeão com um time formado, em sua maioria, por trabalhadores braçais, negros e analfabetos. Era demais para as elites cariocas! Pouco antes, em 1920, o presidente Epitácio Pessoa proibiu que 5 atletas negros e “mulatos” representassem o país pela seleção brasileira.
Em fevereiro de 1924 os principais clubes cariocas (Fluminense, Flamengo, Botafogo e América, com a cooptação do proletário Bangu) saíram da LMDT e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), presidida pelo grande empresário Arnaldo Guinle, também presidente do Fluminense. O Vasco não foi convidado para ser um dos clubes fundadores, e havia uma razão, a aprovação de seu regulamento.
Aprovado o regulamento, no mês seguinte o Vasco foi convidado a se filiar à AMEA, afinal, havia sido o campeão carioca e, por larga margem, o clube com maior média de público do campeonato. Acompanhava o convite de filiação, as novas regras para inscrição de atletas, ainda mais restritivas, com suas respectivas fichas de dados pessoais, incluindo profissão e local de trabalho.
O Vasco enviou as fichas de 25 jogadores e no dia 30 de março recebeu da AMEA uma carta solicitando que excluísse 12 deles: Russinho, Leitão, Ceci, Nelson, Paschoal e Mingote (comerciários), Negrito, Arthur e Nicomedes (operários), Bolão (auxiliar de despachante), Arlindo (empregado de seguradora) e Brilhante (sem emprego).
Em 6 de abril a Comissão Organizadora da AMEA divulgou nos jornais as condições para a filiação do Vasco à entidade, colocado como agremiação secundária na entidade, pela simplicidade de sua sede, pelas deficiências de seu campo e pela condição profissional de grande número de seus associados, e o mais grave, exigindo a exclusão de 12 de seus atletas por não se enquadrarem no novo regulamento: trabalhadores braçais, negros e analfabetos. No dia seguinte, a diretoria do Vasco se reuniu e decidiu não aceitar o convite da AMEA e permanecer na LMDT. Dizia, em resumo:
“Quanto à condição de eliminarmos 12 de nossos jogadores, resolveu, por unanimidade, a diretoria do CRVG não aceitar a investigação das posições sociais de nossos atletas, pois seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar alguns dos que lutaram pelo título de campeão de futebol do Rio de 1923. São esses 12 jogadores, jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”.
Na contrarresposta da AMEA, em 17 de abril, o presidente Arnaldo Guinle lamentou o fato de o Vasco não se enquadrar nos regulamentos da entidade e sugeriu ao presidente do Vasco que “no futuro fizesse todos os esforços para constituir equipes genuinamente portuguesas”, numa clara tentativa de estigmatizar o clube como uma espécie de pária estrangeiro, que atuaria contra os legítimos clubes brasileiros, logo o Vasco, o mais brasileiro dos clubes de futebol, aquele que melhor representava a diversidade de nossa população (brasileiros e estrangeiros, negros e brancos, trabalhadores e comerciantes).
E o Vasco ficou na LMDT com os clubes pequenos, sagrando-se bicampeão em 1924. Mas, mesmo na liga menor, o Vasco continuou enchendo os estádios, e em 1925 a AMEA se dobrou e retirou as pedantes exigências feitas no ano anterior, e assim o Vasco ingressou na entidade com seus atletas operários e comerciários; negros e brancos; brasileiros e portugueses; a maioria analfabeto.
Mas, infelizmente, o preconceito não acabou aí. Nesse mesmo ano, a AMEA exigiu que do CRVG um estádio decente para seus jogos. O clube não fez por menos e, em 1925, fruto de uma arrecadação popular junto a comerciantes e trabalhadores, comprou por 609 contos de réis um terreno de 65.000 m² em São Cristóvão.
Mais 2.000 contos foram arrecadados e em junho de 1926 começou a construção do estádio de São Januário, inaugurado em 21 de abril de 1927, com capacidade para 45.000 pessoas, simplesmente o maior da América do Sul até 1930 (superado pelo estádio Centenário, em Montevideu), o maior do Brasil até 1938 (superado pelo Pacaembu) e o maior do Rio até 1950 (superado pelo Maracanã).
São Januário, além de ser por mais de duas décadas o palco dos principais clássicos cariocas e da seleção, foi também palco de eventos populares e democráticas, como desfiles de escola de samba, concertos de Villas Lobos, lançamento das leis trabalhistas por Getúlio Vargas, discursos de Prestes na campanha de 1946 e até mesmo mobilização de arrecadação financeira para a compra de dois aviões para a FAB combater o nazifascismo na Itália.
Com a crescente miscigenação, o preconceito contra os portugueses foi cedendo ao longo das décadas, ficando mais no folclore do futebol, com os vascaínos sendo apelidados pelos torcedores adversários de “bacalhau”. Mas o racismo persistiu. É curioso observar que foi, coincidentemente nas décadas de 1920/30, quando a resistência movida pelo CRVG ao racismo se tornou vitoriosa, que surgiram as primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro.
E São Januário estava cercado por favelas, redutos do samba, como a do Tuiuti, do Arará, do Pedregulho, o complexo do Caju (Parque Alegria, Chatuba), o complexo da Mangueira (Telégrafo, Candelária, Buraco Quente, Chalé) e a Barreira do Vasco. Não por acaso, notáveis sambistas como Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus, Ivone Lara, Zé Ketty, Jamelão, Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e muitos outros se tornaram vascaínos.
Mas os vascaínos ilustres não se resumiram ao mundo do futebol e do samba. Identificados com a luta do Vasco contra o preconceito e motivados pelos grandes esquadrões, vamos encontrar ilustres vascaínos entre os intelectuais brasileiros (Carlos Drumond de Andrade, Rubem Fonseca, Raquel de Queiroz, João Ubaldo, Maria da Conceição Tavares); na MPB (Roberto e Erasmo Carlos, João Gilberto, Doris Monteiro, Lúcio Alves, Tim Maia, Raul Seixas, Aldir Blanc, Luís Melodia, Gonzaguinha, Edu Lobo, Francis Hime); no cinema/teatro/TV (Sônia Braga, Tônia Carrero, Aracy de Almeida, Marcos Palmeira, Miguel Falabella, Chacrinha, Antônio Pitanga); no humorismo (Chico Anísio, Renato Aragão, Tom Cavalcanti, Jaguar); na política (Getúlio Vargas, JK, Jango, Lula) e em outros esportes, como o bicampeão olímpico Ademar Ferreira da Silva no atletismo.
O Vasco foi pioneiro na lua contra o racismo, mas é evidente que o veto a jogadores negros não tinha como se sustentar por muito mais tempo. Mas foi a luta contra o racismo promovida pelo CRVG que abriu as portas para que o Brasil tivesse Fausto na Copa de 1930; Leônidas da Silva e Domingos da Guia conquistando o 3º lugar em 1938; Zizinho e Barbosa vice-campeões em 1950; Pelé, Garrincha e Didi no bicampeonato de 1958/1962; Pelé, Jairzinho e Carlos Alberto no tri em 1970; Romário, Mazinho e Cafu no tetra em 1994 e Ronaldinho, Rivaldo e Ronaldo no penta em 2002.
A luta contra o racismo continua atual, conforme pode ser atestado pela cruzada antirracista movida pelo jogador Vinícius Júnior, do Real Madri, ao tempo que novos preconceitos ganham novas roupagens, como a misoginia, a homofobia e a xenofobia. E a luta contra esses preconceitos e o respeito à diversidade se mantém no CRVG, também presente nos cânticos da torcida. Talvez isso explique o fato da torcida vascaína, mesmo após 23 anos de falta de títulos, humilhações e sofrimento nas idas e vindas à Série B, continuar crescendo e mobilizando, como diz seu hino, 12 milhões de brasileiros de norte a sul do Brasil. É a comprovação de que não se trata apenas de futebol.
É fato que figuras conservadoras e ditatoriais, como Eurico Miranda, macularam a história do Vasco, mas a torcida soube preservar a alma do clube. É o que explica que na final do Brasileirão de 1989 contra o São Paulo no Morumbi – disputada em 16 de dezembro, véspera do 2º turno da eleição para presidente – cerca de 10.000 vascaínos saudaram o candidato (e vascaíno) Lula com o cântico: “Olê, olê, olê, olá, Vasco, Lula”! O Vasco venceu, mas Lula perdeu para Collor após várias manipulações perpetradas pelo candidato da burguesia.
Enfim, a “Resposta Histórica” e seus desdobramentos não dizem respeito apenas ao futebol ou aos vascaínos, mas a todos aqueles que, torcedores dos mais variados clubes, apaixonados ou não por futebol, sonham com uma sociedade livre de preconceitos, efetivamente democrática e socialmente justa.