desoneração da folha salarial é um tema recorrente da pauta do atual governo desde seu início. Os repasses ao Sistema S mereceram especial atenção das autoridades econômicas federais, que apostam na redução de custos de manutenção de assalariados, estimulando, assim, a geração de emprego. Com o avanço da pandemia do coronavírus, a União decidiu reduzir a contribuição ao Sistema S pela metade por três meses (abril a junho), o que, de acordo com o governo, reduziria o ônus das empresas em R$ 2,2 bilhões durante esse período.
De início, é importante destacar que há um duplo equívoco nessa desoneração via Sistema S. Primeiro, pelo fato da medida ter pouca eficácia em termos de manutenção do emprego, haja vista que a desoneração beneficia relativamente mais as grandes empresas, enquanto a maior parte do emprego formal do país está concentrada nas MPEs. Estimativa baseada na RAIS mostra que, nas atividades contribuintes do Sistema S, cerca de 60% do emprego formal está nas MPEs, apesar destas representarem 50% do financiamento do sistema. A desoneração, assim, não deve beneficiar empresas de forma proporcional à sua importância no mercado de trabalho. Segundo, pelo fato de enfraquecer instituições que poderiam estar atuando junto ao poder público no combate à crise, seja pelo um viés educativo, com oferta de cursos on-line e gratuitos abertos a população durante o período de quarentena; seja aproveitando a infraestrutura física de suas unidades para aumentar o número de leitos, distribuir mantimentos à população e criar postos de vacinação e de testes da doença.
Essa medida emergencial pode ser o prenuncio de um futuro breve: o esvaziamento do Sistema S, seja pela via política, seja pela via da decadência de sua fonte de recursos. Não se pode ignorar que, na economia moderna, a massa salarial perderá peso na economia. Os motivos são claros.
Em primeiro lugar, há evidências de que gerações mais novas e pessoas com maior escolaridade e renda tendem a preferir atuar de forma independente no mercado de trabalho. O Datafolha fez uma pesquisa em 2018 que revela um quadro parecido no Brasil.
Em segundo lugar, cada vez mais empregadores optam por automatizar funções. Segundo estudo da Mckinsey Global Institute, até 2030 14% dos postos de trabalhadores serão perdidos em virtude da automação no país. Na pesquisa, chama-se a atenção que no país há um baixo preparo por parte da força de trabalho em ocupar vagas que podem vir a serem geradas pela economia digital.
Vale ainda apontar para um terceiro fator, presente no caso brasileiro: firmas buscam contornar os altos custos associados ao emprego formal. Esse é o fator chave para explicar a “pejotização” no Brasil. É o resultado de um ajuste de mercado, não planejado pelo Estado. No fundo, é uma forma que a sociedade encontra para reduzir custos e ampliar a produtividade, à revelia do governo e de sua falta de percepção e planejamento. Raros países têm tantos proprietários de empresas como o Brasil.
Diante desse cenário, as estatísticas evidenciam uma redução do emprego formal de alta renda, que junto à chamada robotização, fazem com que as entidades do Sistema S fiquem cada vez mais dependentes do financiamento fundado na massa salarial dos trabalhadores da base, de menores rendimentos.
Apesar da decisão do corte pelo Governo dos repasses ao Sistema S ser de natureza transitória, não se pode ignorar essa tendência de enfraquecimento de seu financiamento. Serão exigidos diagnóstico e soluções mais inteligentes, complexas e trabalhosas.
Infelizmente, o financiamento às entidades de fomento à educação técnica é um debate muito incipiente e que conta com poucas pesquisas. Natural que, nesse cenário, soluções inovadoras para a questão sejam escassas.
Uma das pesquisas mais relevantes nesse campo é da Unesco. Tal estudo advoga sobre a necessidade de conter a dependência excessiva de taxas sobre a folha de pagamento como um modo de financiamento dessas entidades, especialmente pelo fato dessa medida desencorajar a demanda por mão-de-obra. Ainda assim, é exaltada a importância de se ter um mecanismo de financiamento estável, permitindo às entidades planejar a oferta de serviços à população, notadamente nesse momento no qual se demanda cada vez mais capacitação de alta qualidade, em virtude da concorrência fortíssima do mercado internacional.
Assim, pode-se pensar, no caso brasileiro, em uma migração de base de incidência, da atual (salários) para uma base mais ampla e não decadente, como consumo ou renda e lucros. Essa mudança, inclusive, poderia se dar na esteira do debate da reforma tributária e do consenso que se forma sobre a necessidade de um grande IVA no país. Pode-se pensar ainda em uma espécie de “taxa sobre a automação”: o governo poderia tributar parte dos ganhos dos empregadores que mais desempregam e usarem a receita para custear os trabalhadores excluídos. É uma ideia que tem apelo social e é defendida por alguns autores fora do Brasil.
Preservar o orçamento do Sistema S e se possível lutar por sua expansão, para atender às novas e crescentes demandas dos trabalhadores, ao que tudo indica, passará por manter as respectivas contribuições, mas aplicadas sobre outras bases de cálculo (em substituição ou complementarmente à base atual) ou ainda com a criação de uma nova contribuição. Algumas opções podem ser vislumbradas, cada uma com vantagens e desvantagens. Abrir uma discussão política com o devido suporte técnico pode ser o ponto de partida para o Sistema S vencer esse enorme desafio.
Reprodução Poder 360