Orlando Pontes e Tácido Rodrigues
Ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo defende a cassação dos parlamentares que ocuparam os plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. “Não é uma obstrução regimental. É uma obstrução física que caracteriza falta de decoro parlamentar. Se houvesse no Parlamento um comportamento adequado, todos teriam que ser cassados”.
Para Cardozo, “é tolo” quem acredita que a anistia ampla, geral e irrestrita apontada pelos bolsonaristas seria uma forma de pacificar o País. “Não haverá pacificação depois. Haverá continuidade de abuso e eles se sentirão livres para tentar outros golpes. A anistia aos golpistas tem que ser repelida com vigor”.
Ex-Advogado-Geral da União, ele rechaça possíveis abusos do ministro Alexandre de Moraes, do STF, no processo que culminou na prisão domiciliar de Jair Bolsonaro. “Só aplausos ao Supremo e vaias para aqueles que querem intimidá-lo”.
Como vê a política brasileira após a decretação da prisão domiciliar de Jair Bolsonaro? – Vejo esse quadro com muita preocupação. Essa crise pela qual o Brasil passa hoje tem a ver com uma conduta negativa, antidemocrática, autoritária e nada republicana da extrema direita brasileira e dos Estados Unidos da América. Nós tivemos uma tentativa de golpe no Brasil. Felizmente, mal-sucedida. Uma tentativa de golpe com documento escrito. Tudo provado. É impossível dizer que não houve essa tentativa. Os golpes de Estado normalmente são feitos na calada da noite. Esse foi tramado à luz do sol, e por anos. Aliás, honra seja feita a Jair Bolsonaro: ele sempre disse que queria um Estado autoritário no Brasil e sempre defendeu a tortura. Quando teve a oportunidade de ser presidente, tentou implementar isso. Não conseguiu, felizmente. Agora, nos EUA, temos um presidente de extrema direita que tenta a todo tempo fragilizar a institucionalidade do país. Ele quer, na prática, se transformar num autocrata.
Deputados e senadores bolsonaristas ocuparam as duas Casas, atrapalhado os trabalhos. Eles podem ser punidos regimentalmente? – Tudo isso que está acontecendo decorre de uma ação da extrema direita no Brasil e nos EUA. O resultado é que temos uma junção da maluquice, do descompromisso democrático entre forças políticas poderosas norte-americanas e de Jair Bolsonaro e seus familiares. É uma realidade perversa, que está cada vez mais sendo radicalizada, porque os bolsonaristas sabem que a condenação é certa. Não porque o Supremo é parcial, mas porque as provas são absolutamente impossíveis de serem apagadas do processo. Então, a solução que encontraram é criar tumulto. E resolveram pressionar o Congresso Nacional para conseguir uma anistia, bem como abrir um processo de impeachment contra Alexandre Moraes. Só que de uma forma absolutamente destrambelhada. Não é uma obstrução regimental. É uma obstrução física, que caracterizaria, a meu ver, falta de decoro parlamentar.
Que consequências eles podem sofrer? – Se houvesse no Parlamento um comportamento adequado, todos teriam que ser cassados, indiscutivelmente. Agora, como há um número expressivo de senadores e deputados envolvidos nesses atos, não creio que a Câmara e o Senado conseguirão resolver isso do ponto de vista ético-disciplinar.
A direita prega uma anistia ampla, geral e irrestrita como solução para pacificar o País. O que acha disso? – Eu acho bastante engraçado. Tentam dar um golpe de Estado, tentam derrubar um governo eleito, rasgar a Constituição, e depois, para pacificar o País, querem anistiar aqueles que fizeram isso. Como assim? A meu ver, tolo é quem acredita nisso. Porque não haverá pacificação depois. Haverá continuidade de abuso. Eles se sentirão empoderados e livres para tentar outros golpes, outras formas autoritárias. A proposta de anistia é um verdadeiro absurdo, que tem que ser repelido com vigor por todos os brasileiros que têm compromisso com a democracia e com o Estado de Direito.
Quanto à postura do Congresso com o Executivo, o sr. considera que a relação entre Poderes perdeu a essência original? – Acredito que temos um problema que não é brasileiro apenas, é mundial. Um problema grave no chamado Estado Democrático de Direito, porque a democracia representativa está cada vez mais em xeque. Da mesma forma, uma série de questões relacionadas à atuação jurisdicional implica em uma situação de desequilíbrio na relação entre os Poderes. O Brasil radicalizou isso. Depois do impeachment de Dilma Rousseff, que na minha opinião foi um golpe, parece que os poderes saíram da casinha institucional em que deveriam estar atuando. Eu achava que em 2018 um novo presidente eleito poderia recalibrar a democracia no Brasil, mas eis que as urnas elegeram Jair Bolsonaro. Ele, na verdade, descalibrou ainda mais a democracia e tentou dar um golpe de Estado. Isso que estamos vivendo hoje é o resultado desse processo.
Como vê a condução do governo Lula nesta negociação política e comercial com os EUA? – Eu, pessoalmente, estou gostando muito. Por uma razão muito simples: Lula tem respondido à altura o que considero violação da soberania brasileira. O presidente da República disse que não se curvaria, que não aceitaria. Ao mesmo tempo, ele está aberto ao diálogo. Colocou o vice-presidente e o Itamaraty para dialogar com o governo Trump para que parasse com esse tipo de coisa. Trump, por sua vez, parece que não sabe distinguir algo que existe nos EUA, que é a separação de Poderes. Ele, muitas vezes, se refere ao governo brasileiro punindo Jair Bolsonaro, quando não é o governo, é o Supremo Tribunal Federal. É um poder independente. E aí coloca na mesma negociação algo que é inegociável. Jamais posso negociar a soberania do país, nem a independência de magistrados de decidirem num caso concreto. Uma coisa é a negociação sobre tarifa. Discutir 10% aqui, 20% lá, 30% aqui. Mas apenas no âmbito econômico. Discutir soberania, tentar colocar o Brasil de joelhos, colocar o Supremo de cócoras, é inaceitável.
O sr. acha que, em alguma medida, o STF tem atuado acima do tom? – Eu tenho uma visão da atuação do poder jurisdicional no mundo e no Brasil sob uma ótica crítica. Acho que, algumas vezes, o ativismo judicial exorbita. Mesmo em algumas decisões passadas do STF, eu fiz considerações críticas e continuo a fazê-las. Mas, nesse caso do ex-presidente Bolsonaro, acho que não. O Supremo é o guardião da democracia afirmada na Constituição. No Estado de Direito, é assim que funciona. Os ministros têm agido com bastante vigor na defesa da democracia brasileira. Acredito que se não fosse o STF, inclusive a própria pessoa do ministro Alexandre Moraes, não teríamos tido uma solução tão tranquila de respeito à democracia. Ele agiu corretamente, de forma altiva e correta na defesa do valor maior que está na Constituição de 1988. Do ponto de vista da afirmação democrática, só aplausos ao Supremo Tribunal Federal, e vaias para aqueles que querem intimidá-lo.
O apoio dos demais ministros, incluindo o decano Gilmar Mendes, a Alexandre de Moraes demonstra que o STF está unido? – Ainda bem. Já havia visto algumas especulações de que o ministro Gilmar Mendes estaria isolado. Se fosse verdade, eu lamentaria profundamente. Nesta hora, é necessário lutar pela democracia e pela dignidade do Supremo. A Corte tem que agir com o máximo rigor, dentro da lei. No caso concreto, Alexandre Moraes, a meu ver, cumpriu a lei e aquela missão maior que a Constituição lhe outorga.