Nos últimos 40 anos, para defender uma universidade pública, autônoma, gratuita, laica e democrática, foirealizada mais de uma dezena de paralisações por docentes, discentes e técnicos administrativos. Algumas duraram mais de quatro meses. Todas repostas integralmente, sem balbúrdia ou plantação de papoulas, cogumelos ou canabis.
Então, por que tanto apressamento para o que estão denominando de “flexibilização, em caráter excepcional e temporário, do desenvolvimento de estratégias de ensino-aprendizagem por meio de Tecnologias da Informação e Comunicação em substituição às estratégias presenciais para o Ensino de Graduação”?
A minuta da proposta que será submetida ao Conselho de Ensino e Pesquisa (Consepe) é tão pornográfica que faria o cartunista Carlos Zéfiro (dos gibis de “catecismo sexual” dos anos 1960) e a escritora Adelaide Carraro ficarem ruborizados.
Com as polêmicas, mercantilismo, interesses escusos e desgastes da EaD, a referida minuta se esconde por detrás do termo “flexibilização” das aulas presenciais para o ensino de graduação. Sem falar, que “…em caráter excepcional e temporário…”também remete aos gibis de “catecismo” de Carlos Zéfiro, que, com estratégia semelhante, indicava como utilizar três grandes mentiras (por motivos óbvios, não dá para serem contadas neste espaço) para convencer a namorada e, assim, chegar aos objetivos buscados.
Commodity – Com tal ressignificação, tenta esconder a ameaça que ronda o ensino superior público e o trabalho docente; o que já vem ocorrendo e sendo minado desde muito tempo antes da pandemia, para atender os interesses de grandes grupos educacionais mercantis com foco exclusivamente empresarial e no lucro. A educação se tornando “commodity”.
A pandemia apenas está permitindo e facilitando a realização de experimentos em todo o espectro educacional, do ensino superior ao básico. Com tal ressignificação, a flexibilidade será aplicadacrescentemente na estrutura física da universidade (por que cidades universitárias?), na exploração do trabalho docente e nos currículos, que em muitos casos já estão defasados e distantes do que se espera de um profissional para os próximos anos. Uma discussão que não tem merecido discussão alguma por parte do Consepe e demais instâncias. Afinal, a preocupação do MEC e do capital é que sejam formados profissionais acríticos e adaptáveis aos seus interesses.
A insuspeita The Economist (1), em editorial defendendo os interesses do cassino global e dos empresários, conclama a volta às aulas com “cuidado”, colocando a ciência contra os cuidados com a saúde. Nem a covid-19 quase levando a óbito o primeiro ministro britânico serviu para sensibilizar.
O mesmo caminho foi o escolhido pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), no último 28 de abril, quando, praticamente, desconsiderou, em suas indicações, as consequências nefastas da pandemia e a falta de recursos financeiros para a educação, em todos os níveis. Sem falar no congelamento de reajustes salariais por mais dois anos e no R$ 1,2 trilhão doado aos bancos. E a pandemia? Só um detalhe para ornamentar o texto.
Na contramão, o The Wall Street Journal(2) noticiou, no dia 29 de abril, que Washington D.C., assim como partes da Georgia, Texas, dentre outras regiões, após tentarem a “flexibilização” das aulas presenciais, interromperam as atividades e anteciparam o fim do período acadêmico, após verificarem que havia muita desigualdade social e muitos estudantes estavam ficando para trás – nem todos os estudantes possuem acesso à internet.
Também o Le monde (3) divulgou a posição que o ministro da Educação da França, Édouard Philippe, apresentou à Assembleia Nacional, onde reconheceuque a flexibilização, também na França,deixou muitos estudantes pelo caminhoem função das desigualdades. E, deixou em aberto, para os parlamentares, algumas questões, tais como: “Quem voltará às aulas? Para fazer o que? Por quanto tempo? E em quantos estabelecimentos?”
Coalizão – O que dizer, então, que ocorrerá no Brasil, com suas enormes desigualdades socioeconômicas, se adotada a flexibilização? E nas universidades federais, onde a pesquisa da ANDIFES-2019 apontou que “70,2% dos estudantes das federais brasileiras são de baixa renda, com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo por mês”. E, no outro extremo, “estudantes com rendimento maior que dez salários mínimos, não chega a somar 1% do total”.
Os riscos envolvidos não são poucos, e as possíveis consequências para a educação pública enormes em todos os aspectos, sejam didáticos, pedagógicos, econômicos, institucionais e profissionais. O lucro ficará, como sempre, com os mesmos.
Para isso, no final de março, capitaneada pela Unesco (4), foi lançada a Coalizão Global de Educação com“os objetivos de propulsionar, no curto prazo, a utilização de tecnologias de aprendizagem remota e, no longo prazo, consolidar o uso de tecnologias de educação nos sistemas regulares de ensino”.
A coalizão envolve além da Unesco,o Banco Mundial, a OCDE, a ONU, a OMS, o UNICEF, a OIT, grupos empresariais (Microsoft, Google, Facebook, Zoom, Moodle, Huawei, Tony Blair Institute for Global Change, Fundação Telefônica, GSMA, Weidong, KPMG, dentre outros) e organizações filantrópicas, sem fins lucrativos, como Khan Academy, Dubai Cares, Profuturo e Sesame Street.
A OCDE(5), membro da coalizão,identificou em 98 países o óbvio, queos recursos mais usados durante a pandemia são, entre outros: Google, Google Classroom, Google Suite, Google Hangout, Google Meet, Facebook, Microsoft one note, Microsoft, Google Drive/MicrosoftTeams, Moodle, Zoom, Youtube.
Comitês – A partir de suaspesquisas, a OCDE, membro da Coalizão Global de Educação,recomendou a criação de comitêslocais ou forças tarefa, que fiquemresponsáveis por coordenar a implementação das estratégias em resposta à pandemia.
O trabalho desse comitê deverá ser organizado prevendo duas etapas. Aprimeira, objetivando completar o ano acadêmico e concedendo ênfase a “competências socioemocionais como resiliência e autoeficácia”. A segunda,considerando o próximo anoacadêmico, principalmente, se ainda não houver uma vacina contra a covid-19 e o afastamento social continue necessário.
Sanguessugas – E no Brasil, não aconteceu nada? Como não podia deixar de ser, na semana seguinte, os sanguessugas, comandados pela “ONG” oficial de empresários da educação intitulada Todos Pela Educação (TPE), coordenou, uma reunião com a participação do Conselho Nacional de Educação, Undime, Consed e representantes do Banco Mundial, para atender o indicado pela OCDE e outros organismos internacionais.
Como justificativa, a necessidade de se discutir pontos centrais da Medida Provisória nº 934/2020, que estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Isto é, da “flexibilização” das aulas presenciais.
Não há, na UFMT, acúmulo de discussões sobre a questão e, como previsto não tivemos no dia 6 de maiouma posição aprofundada e madura sobre a questão, sem contar as limitações das reuniões à distância. Se não bastasse, a voracidade em atender os interesses de entidades mercantis da educação e se curvar frente aos desmandos do atual ministro, até os atos produzidos pelo MEC foram anexados ao processo em papel timbrado da ABMES.
Importante salientar que a ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior, fundada em 1982,”é a entidade que representa o ensino superior particular e atua junto ao governo e Congresso Nacional pelos interesses legítimos das instituições educacionais, mantendo seus associados sempre informados, em primeira mão, sobre as principais diretrizes e conquistas para o setor”.
E, mais grave ainda, o processo com os documentos anexados pelos interessados, mostra uma estranha articulação materializada, por alguns,nos dias 29 e 30 de abril, para tentar aprovar, de afogadilho, uma decisão extremamente grave para o futuro da universidade.
A pandemia não pode, em hipótese alguma, ser utilizada para descompromissar ainda mais as obrigações do Estado com a educação, em especial com o ensino superior brasileiro, que vem sofrendo enormes ataques. Muito menos servir de trampolim para o que quer que seja e para quem quer que seja.
O mínimo que o Consepe deve decidir, já que há um “processo” para ser apreciado, é aprovar: – a discussão da reorganização do calendário 2020 em conjunto com o de 2021, após o retorno seguro e liberado pelo comitê de saúde, sem qualquer substituição de atividades desenvolvidas por EaD, flexibilização de aulas presenciais ou ensino remoto para integralização da carga horária dos diversos níveis e modalidades; debater rigorosa e aprofundadamente os currículos e a formação profissional, nos diferentes cursos oferecidos pela universidade,tendo em vista a evolução das profissões e suas atribuições frente às demandas da sociedade para os próximos pelo menos quinze anos.
Não podemos permitir mais esse golpe contra a universidade e a educação pública no Brasil. Mais do que em outros momentos nos últimos quarenta anos, temos que lutar pelo sonho que nos trouxe até aqui, isto é, a defesa de uma universidade pública, autônoma, gratuita, laica, democrática e socialmente referenciada.
(1) The Economist. Covid-19 and the Classroom. Open School First. May 02, 2020.
(2) Tawnell D. Hobbs. Some School Districts Plan to End the Year Early, Call Remote Learning too Tough. April 29,2020. The Wall Street Journal – https://www.wsj.com/articles/some-school-districts-plan-to-end-the-year-early-call-remote-learning-too-tough-11588084673
(3) Mattea Battaglia. Un retour à l’école progressif et incertain après la fin du confinement lié au coronavirus. Le Monde, 29 avril 2020.https://www.lemonde.fr/education/article/2020/04/29/un-retour-a-l-ecole-progressif-et-incertain-apres-la-fin-du-confinement-liee-au-coronavirus_6038105_1473685.html
(4) UNESCO. Global Education Coalition for COVID-19 Response.
https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/globalcoalition
(5) OCDE. A FRAMEWORK TO GUIDE AN EDUCATION RESPONSE TO THE COVID19 PANDEMIC OF 2020.
https://www.hm.ee/sites/default/files/framework_guide_v1_002_harward.pdf
(*) Professor da Faculdade de Geociências da Universidade Federal de Mato Grosso