Manhã chuvosa de domingo, 7 de janeiro de 2.018. A TV anuncia e logo o jornal vem confirmar: Carlos Heitor Cony morreu na noite anterior, aos 91 anos de idade. Permaneço um longo momento em silêncio, mas engana-se quem imaginar que penso nele como um morto. Fecho os olhos e o vejo bem vivo, agitado, falante, mesmo quando sentado diante de sua máquina de escrever, no grande e claro salão com vista para o Aterro, o mar, o céu, o outro lado da Guanabara. Somos algo como uma dúzia de jornalistas, escrevemos para revistas destinadas a diversas categorias de leitores, publicadas pelo Grupo Bloch. Cony edita uma delas, da qual sou redator.
Estávamos na década de 1960. E a chegada dele foi uma surpresa para nós. Supúnhamos que ainda amargava mais uma das várias prisões com as quais a ditadura tentava calar-lhe a boca. E todos nos sentíamos gratos ao velho Adolfo Bloch – top do grupo empresarial – pela sua corajosa decisão de trazer para a nossa companhia aquele ainda jovem autor de excelentes romances e desafiadoras crônicas dedicadas em especial ao sombrio momento histórico que atravessávamos.
A empresa atribuiu-lhe, de imediato, a tarefa de ser o pai de uma revista em gestação. E terminada esta, editá-la mensalmente, com a ajuda de uns pouquíssimos redatores, entre os quais o autor desta breve memória. A revista se chamaria Ele-Ela. Haveria um pouco de sexo em seu cardápio, mas nada que chegasse a quilômetros da pornografia. Nós, os redatores brasileiros, escreveríamos algo como a metade das matérias. As outras seriam adquiridas da revista alemã Jasmin e traduzidas por uma senhora que fazia parte da redação.
A partir do segundo número, Cony me surpreendeu com uma tarefa desafiadora: traduzir mensalmente um conto de autor estrangeiro. O conto seria publicado sob a forma de encarte, que poderia ser destacado da revista e colecionado pelo leitor. Minha experiência no ofício era pequena. Tudo que eu havia traduzido profissionalmente até então eram uns contos policiais de baixa qualidade, a serem publicados na edição brasileira de uma revista norte-americana especializada no gênero.
Para me encorajar, Cony prometeu-me que Ele-Ela só publicaria contos de autores cuja obra já estivesse internacionalmente conhecida pela sua alta, altíssima qualidade. Dito e feito: abrimos a seção com uma clássica história de D.H. Lawrence, escritor inglês cuja porta para a celebridade foi o romance intitulado O amante de Lady Chaterley, marco de rompimento com os tabus sexuais, e por isso proibido durante dezenas de anos na sua própria e conservadora Inglaterra.
Vieram em seguida autores de outras nacionalidades, tão ou mais célebres do que Lawrence: como o francês Marcel Proust e o italiano Cesare Pavese… Infelizmente a censura entendia que falar de sexo, mesmo de leve, era uma grave ofensa à moral. As provas de cada número eram obrigatoriamente levadas aos censores de Brasília, que faziam cortes absurdos e impiedosos. Não demorou muito para que inviabilizassem a revista e a tirassem de circulação.
Entre o público comum dava-se o contrário. A revista era muito lida e aqueles encartes colecionados por muitos leitores de bom gosto. Certo dia, uma senhora que se identificou como professora de língua e literatura inglesa, telefonou-me para informar que o Instituto Brasil-Estados Unidos, do Rio de Janeiro, usava em seus cursos, como material didático auxiliar, os contos que eu traduzia do inglês e eram publicados pela revista.
Dei a notícia a Cony. Que a recebeu com um sorriso difícil de ser classificado. Não por mim. Eu sabia que o sorriso do ex-seminarista Cony expressava, ao mesmo tempo, satisfação e ceticismo. Agora que a sua Pessach – sua Passagem – terminou, fico a me perguntar com quem ele irá confrontar-se por causa da sua cética visão de mundo, dos mundos!… Mas no fundo não duvido que ele chegará incólume à outra margem.