Aldemario Araujo Castro (*)
Nas últimas semanas, a grande imprensa destacou, com invulgar intensidade, as chamadas “pautas-bombas” em curso no Legislativo. “Pauta-bomba é como é chamado no Brasil o projeto de lei que gera gastos públicos e que está na contramão do ajuste fiscal, dificultando que se atinja a meta fiscal. Ou seja, são medidas que causam impacto nos cofres públicos” (fonte)
O maior destaque foi dado à Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2023, proposição aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado que “institui a parcela mensal de valorização por tempo de serviço dos magistrados e do Ministério Público, além de outras categorias que foram incluídas depois” (fonte).
“Popularmente conhecida como PEC do Quinquênio, a proposta concede um aumento salarial de 5% a cada cinco anos de serviço para membros do Judiciário e do Ministério Público./ O líder do governo, senador Jaques Wagner (PT-BA), classificou a proposta como uma “bomba [fiscal] que pode estar por vir”. Ele disse haver um estudo que indica que o impacto dos benefícios previstos na proposta pode ser de cerca de R$ 42 bilhões por ano” (fonte).
Trata-se de uma cifra significativa que justifica um debate mais profundo acerca da pertinência, no sentido mais amplo possível, de realização dessas despesas. A análise cuidadosa também é necessária para concluir, com precisão, acerca do impacto financeiro da medida, confirmando ou afastando os números mencionados inicialmente.
O debate, inclusive, precisaria chegar nos critérios de fixação proporcional das remunerações, em função das responsabilidades desempenhadas, em relação a todas as carreiras dos Poderes Públicos.
Curiosamente, em termos de finanças públicas, as “pautas-bombas” explícitas, que recebem uma enorme cobertura midiática, ajudam a manter “convenientemente” escondidas outras “pautas-bombas”. Em que consistem essas “pautas-bombas” ocultas? E a extensão financeira dessas “pautas-bombas” ocultas?
Durante décadas, as finanças públicas brasileiras convivem com despesas e renúncias bilionárias, e até trilionárias, institucionalizadas de tal forma que são vistas e tratadas como normais pelos interesses econômicos dominantes. Elas não rendem sequer uma linha na grande imprensa.
Eis uma despretensiosa lista de despesas ou renúncias, no âmbito das finanças públicas nacionais, que variam de R$ 100 bilhões a R$ 1,5 trilhão por ano: a) serviço da dívida pública (juros e encargos); b) desonerações tributárias; c) subsídios; d) operações compromissadas; e) swap cambial e f) formação das reservas internacionais.
Parte dos gastos e renúncias referidos caracterizam, como destaca o economista Ladislau Dowbor, o rentismo contemporâneo. Segundo Dowbor, por intermédio de um conjunto de mecanismos, uma elite cada vez menos numerosa captura a riqueza social sem investir, empregar ou produzir.
O renomado economista aponta as consequências devastadoras da quadra histórica em que vivemos. Entre elas: a) 26 bilionários concentrarem mais riqueza que metade da humanidade; b) segmentos cada vez maiores da população estão desempregados, precarizados ou desalentadas e c) corporações insensíveis devastam a natureza, apesar da crescente propaganda em torno de ações ambientalmente sustentáveis.
Existe, ainda, uma dimensão extremamente perversa das finanças públicas fora dos holofotes midiáticos e do debate político mais profundo. Trata-se da contínua fixação de limites para o financiamento dos diversos direitos sociais, notadamente aqueles inseridos nos campos da saúde e da educação. Essa é uma “pauta-bomba” absolutamente estratégica e sequer é tratada assim pela grande imprensa.
Esse processo inclui o atual governo, apelidado de Lula 3. É mais uma demonstração do que já afirmei alhures. Todos os governos brasileiros, incluindo Bolsonaro e Lula, são iguais na essência. São fundamentalmente administrados do status quo, assim entendidos os poderosos instrumentos de concentração de recursos trilionários em uma fração mínima da população (0,1%) em detrimento, de diversas formas, da imensa maioria (99,9%).
Desde a edição da Emenda Constitucional 95, de 2016, a pretensão de alteração dos pisos de despesas públicas com saúde e educação entrou na pauta da austeridade fiscal seletiva. Essas antigas vinculações constitucionais em favor dos mais relevantes direitos sociais são postas como os vilões da decantada “estabilidade macroeconômica”.
Curiosamente, despesas e renúncias bem maiores, como as destacadas anteriormente, sequer são cogitadas como objetos de limitações de qualquer natureza. O referido movimento de restrição dos gastos com saúde e educação perseguiram (e perseguem), na prática, a conversão dos pisos em verdadeiros tetos.
O “Novo Arcabouço Fiscal”, patrocinado pelo governo Lula 3, não promove a adequada salvaguarda dos direitos sociais nos campos da saúde e da educação e alimenta o processo voltado para a supressão das despesas mínimas com educação e saúde. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2025, recentemente encaminhado ao Congresso Nacional, reafirma o processo de busca de redução do financiamento dos direitos aludidos.
“Assim, a lógica no Novo Arcabouço Fiscal – que Fernando Haddad elaborou após consultas ao presidente do Banco Central e a meia dúzia de banqueiros do oligopólio privado – supõe a retirada dos pisos constitucionais para saúde e educação, além da sonhada desindexação dos benefícios da Previdência Social em relação ao salário mínimo” (fonte: outraspalavras.net). Essa avaliação foi realizada pelo economista Paulo Kliass.
Não foi por outra razão que os deputados Sâmia Bomfim (PSol/SP), Fernanda Melchionna (PSol/RS), Glauber Braga (PSol/RJ), Chico Alencar (PSol/RJ), Túlio Gadêlha (Rede/PE) e Luiza Erundina (PSol/SP) apresentaram o PLC 62/2024.
O Projeto de Lei Complementar propõe uma modificação urgente na Lei Complementar nº 200, de 2023, que instituiu o Regime Fiscal Sustentável (RFS), conhecido como Novo Arcabouço Fiscal. Este ajuste é fundamental para resolver a discrepância entre o regime de teto de gastos estabelecido pelo NAF e os pisos constitucionais de despesa obrigatória em saúde e educação, conforme estipulados nos artigos 198 e 212 da Constituição Federal.
A implementação do NAF limita o aumento das despesas primárias a no máximo 70% do crescimento das receitas do ano anterior. Por outro lado, os pisos para saúde e educação devem crescer proporcionalmente à totalidade das receitas.
Essa incongruência cria um cenário em que os pisos podem superar substancialmente o crescimento permitido para o conjunto das despesas sob o NAF. A longo prazo, isso irá gerar um desequilíbrio orçamentário insustentável, que membros dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento sugerem resolver diminuindo o crescimento dos pisos constitucionais, sob a justificativa de que estas despesas absorveriam uma fatia cada vez maior do orçamento, prejudicando outras áreas essenciais” (fonte: camara.leg.br).
Infelizmente, temos uma conjugação preocupante de dois fatores extremamente relevantes. De um lado, uma grande imprensa defensora dos interesses socioeconômicos sustentados pelas despesas e renúncias mencionadas. De outra banda, baixos níveis de educação e conscientização políticas capazes de realizar uma contestação consequente dos mecanismos de transferência de montanhas de recursos financeiros da imensa maioria dos brasileiros para uma média dúzia de endinheirados.
No cenário desenhado pelos dois fatores destacados, existem pautas-bombas com enormes repercussões socioeconômicas que permanecem por anos e décadas ocultas do debate público. Dito de outra forma, os poderosos interesses alimentados pelos instrumentos conscientemente escondidos potencializam a divulgação e demonização de certas pautas (as “bombas” explícitas) e escondem outras tantas (as “bombas” ocultas).
(*) Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional