A indicação do presidente Lula, na segunda-feira (27), de Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República, apesar de não ter sido exatamente uma surpresa, trouxe profunda preocupação aos segmentos progressistas da sociedade brasileira no front da esquerda.
A sensação é de já ter visto esse filme (um conservador na PGR) duas vezes nos últimos 10 anos. E, com ela, todas as consequências dessa decisão. A opção de Lula opção por Gonet remete à escolha de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal. O anúncio do nome foi precedido do perfil: seria um homem “terrivelmente evangélico”.
Paulo Gustavo Gonet Branco é considerado um ultrarreligioso. Ele nasceu no Rio de Janeiro, formou-se em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e integra os quadros da PGR desde o fim da década de 1980. Foi sócio fundador, juntamente com o ministro Gilmar Mendes, do Instituto de Direito Público (IDP), de onde saiu em 2017.
Mendes, inclusive, foi um ativo defensor da indicação de Gonet, com o endosso do ministro Alexandre de Moraes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O mesmo Pacheco que vem liderando o ataque do Senado à autonomia do STF, com a aprovação em dois turnos da PEC que limita as possibilidades de decisões monocráticas pelos magistrados. Uma represália à rejeição, por parte do excelso tribunal, do marco temporal das terras indígenas.
Aderência – A indicação de Gonet, um nome de fora da lista tríplice do MPF, foi um sinal de que, apesar do discurso conciliador, Lula segue com boa memória: a então presidente Dilma Rousseff respeitou a indicação, pela categoria, de Rodrigo Janot à PGR. Pouco tempo depois, precisou lidar com um procurador que, refém do borbulho social provocado pela operação Lava-Jato, se manifestou favorável ao impeachmentmotivado essencialmente por vingança do então presidente da Câmara, o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ).
Gonet tem muito mais pontos de aderência com o estilo de Janot do que a imensa maioria dos militantes da área jurídica com perfil mais progressista considera salutar. Em 2018, aceitou a denúncia contra Gleisi Hoffmann (PT-SC) e o ex-ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em 2016, seguida pela absolvição dos dois pela Segunda Turma do STF, em 2018.
Porém, o déjà vu não termina em Janot: o País mal emergiu de quatro anos sob uma atuação subserviente de Augusto Aras aos desvariosconservadores de ocasião de Jair Bolsonaro (PL), e agora terá que contar com um procurador com opiniões profundamente pautadas pelos costumes. Para dizer o mínimo.
Contra cotas, aborto e criminalização da homofobia
Paulo Gonet é um profundo conhecedor de Direito Constitucional, autor de livros e muito prestigiado entre os professores da disciplina. Porém, acabou mais conhecido pelos seus posicionamentos polêmicos em pautas de interesse social: é militante contra o aborto, já escreveu artigos contra as cotas raciais e criticou duramente o julgamento do STF que criminalizou a homofobia.
Aparentemente, o fato de uma pessoa LGBTQIA+ ser morta de forma violenta a cada 32 horas no Brasil não se apresenta como motivo relevante o suficiente para o declaradamente ultracatólico Gonet apoiar a criminalização da conduta homofóbica.
O termo “ultracatólico”, atribuído a Gonet, inclusive, não é uma liberdade poética da imprensa para criticar o futuro PGR: seu rigor em seguir ditames do Vaticano é tamanho que é voz corrente em Brasília que Gonet é adepto da linha católica ultrarradical Opus Dei, o que ele nega. Mas admite “que tem muitos amigos que são”. Entre eles, o ministro do Trabalho, Ives Gandra Martins, e o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), que, nos bastidores, atuou ativamente pela indicação do amigo de fé. Na troca, Lula ficou livre para optar por Flávio Dino para o Supremo.
Retórica – Apesar da retórica bolsonarista de afirmar que Lula está em vias de cooptar todas as instituições com sucessivas indicações de “comunistas”, na realidade as indicações do presidente são marcadas por algum equilíbrio no espectro: em uma mão indicou Lewandowski, de perfil progressista, e, na outra levou, ao STF Carlos Menezes Direito, falecido em 2009, jurista que também ficou famoso pela tendência ultracatólica e ter sido voto vencido no julgamento que autorizou a pesquisa com células-tronco.
Com a indicação de Flávio Dino, ex-integrante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para o STF,e Gonet para a PGR, Lula demonstra praticar a salutar ferramenta dos freios e contrapesos nas principais instâncias jurídicas do País. Aos demais, só resta torcer para que, desta vez, a indicação de um quadro tão descolado do perfil do governo federal não termine como mais um filme de terror,como o visto nos tempos de Janot e Aras no comando do parquet federal.