Júlio Miragaya (*)
Quando Joseph Goebbels, o “marqueteiro” de Hitler, disse que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, estava dizendo, talvez, a única verdade propalada pelo regime nazista. Se inserem nessa categoria coisas banais, como “comer manga e beber leite em seguida faz mal à saúde” ou que “sair com cabelo molhado no frio causa resfriado”, até “versões oficiais” como “os indígenas brasileiros não foram escravizados porque não estavam aptos ao trabalho” (dupla mentira) ou “o agronegócio só traz coisas boas para o Brasil”.
Mas há uma mentira que perdura há 250 anos: a de que os EUA são uma democracia plena, exemplo para todo o planeta. Essa versão duvidosa de democracia vem desde 1776, quando os tais “pais fundadores” dos EUA proclamaram a independência do país e redigiram sua badalada Constituição. Eram seis os mais destacados: George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, James Madison, Alexander Hamilton e Benjamin Franklin, sendo que os quatro primeiros foram os primeiros presidentes norte-americanos.
E o que os distinguia? Quase todos eram ricos empresários ou proprietários de terras e, com exceção de John Adams, senhores de escravos. A “democracia” que fundaram só valia para os mais ricos, negando os direitos civis a negros escravizados, indígenas, mulheres e trabalhadores. Dessa forma, não surpreende que nas primeiras eleições, em 1788, num país com 3,7 milhões de habitantes, George Washington tenha sido eleito por parcos 28 mil eleitores (0,8%) e reeleito em 1792 com um número ainda menor, 11 mil (0,3%).
O direito a voto dos homens negros só foi instituído em 1870, mas na prática negado mediante os chamados “códigos negros” (exigência de alfabetização, registro partidário etc), e só efetivamente respeitado em 1965. Para as mulheres brancas o direito a voto só ocorreu em 1920, e para os indígenas, em 1948.
Aos negros, a “democracia” norte-americana reservou a escravidão por longos 89 anos, e mesmo após sua abolição, a escravidão velada por mais 60 anos através de mecanismos que “prendiam” os negros às terras de seus antigos senhores, em meio aos assassinatos em massa pela Ku Klux Klan.
Aos indígenas, reservou o genocídio. E aos que sobreviveram, a expulsão de suas terras e, quando resistiam, o massacre. Aos vizinhos mexicanos, a invasão e tomada de metade de seu território e a expropriação de suas fazendas. Aos asiáticos, o trabalho semi servil de chineses na construção da malha ferroviária e o confinamento dos nipo-americanos durante a 2ª Guerra Mundial.
Negros (12,4%); asiáticos (6,2%); indígenas (1,1%); hispânicos/chicanos (18,3%) e miscigenados (4,2%) já perfazem 42,1% da população dos EUA, contra 57,8% de brancos não hispânicos – estima-se que estes serão minoria até 2040, inclusive no eleitorado.
Mas isso pouco importa, pois o sistema eleitoral norte-americano pode ser tudo, menos democrático: a eleição do presidente não se dá pelo voto popular, mas por um colégio eleitoral com 538 eleitores; a ampla maioria dos parlamentares eleitos o são com base no financiamento milionário de campanha bancado pelas grandes corporações; o fracionamento/agrupamento dos distritos eleitorais define as chances dos candidatos e o direcionamento para os partidos Democrata e Republicano é escancarado, pois quando as pessoas vão fazer seus registros eleitorais lhes são apresentadas fichas de filiação apenas a essas duas agremiações.
Em sua “carta” de 9 de julho a Lula, Trump vomitou arrogância ao dizer que os EUA defenderão a democracia e a liberdade de expressão em todo canto do planeta. Ignora, cinicamente, que ela inexiste há 99 anos na aliada Arábia Saudita, assim como nas demais ditaduras monárquicas do Golfo Pérsico.
A falsa democracia norte-americana se revela como ditadura de classe quando observamos o poder dos trustes e das grandes corporações, de seus lobbies no Congresso Nacional e na Casa Branca e a repressão à luta dos trabalhadores. O fantasma do comunismo sempre foi um pretexto para a burguesia do país reprimir fortemente o movimento sindical, com milhares de prisões e mortes, culminando no Macartismo, na década de 1950.
Em suma, ao invés de dar lição de democracia, Trump deveria olhar para a falta de democracia em seu próprio país, onde não houve sequer o julgamento dos que tentaram impedir, em janeiro de 2021, a posse do presidente eleito, num golpe que o beneficiaria.
A história dessa falsa democracia está recheada de apoio a ditaduras mundo afora, a intervenções militares e guerras contra povos que não se submetem às suas determinações e a repressão a seu próprio povo..
Com esse “currículo” iniciado em 1776, não surpreende que o atual mandatário se ache à vontade para dizer e fazer o que faz. Afinal, pau que nasce torto, morre torto. Mais pertinente seria denominá-la democracia de fachada ou ditadura disfarçada
(*) Doutor em Desenvolvimento Econômico Sustentável, ex-presidente da Codeplan (atual IPEDF) e do Conselho Federal de Economia