Graças a um acordo com a bancada ruralista para barrar mais uma denúncia na Câmara dos Deputados, o governo Michel Temer definiu que só o ministro do Trabalho pode incluir empregados na Lista Suja do Trabalho Escravo – esvaziando o poder da área técnica responsável pela relação. A nova regra, assinada pelo próprio ministro, Ronaldo Nogueira, altera a forma como são fiscalizadas as denúncias de trabalho escravo e dificulta a comprovação e punição desse tipo de crime.
A portaria é considerada um retrocesso no combate ao trabalho escravo e um grande passo atrás no que diz respeito a direitos humanos no país que foi a última nação independente do continente americano a abolir a escravatura, em 1888, com a Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel. A decisão do governo brasileiro foi criticada pelos ministérios públicos Federal e do Trabalho, que recomendaram que Michel Temer revogue a portaria. Segundo os dois órgãos, a determinação contraria o Código Penal e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A portaria volta a um ponto que a legislação superou há vários anos”, resumiu a procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Segundo o texto, publicado no Diário Oficial da União na segunda-feira (16), apenas poderá ser considerada escravidão a submissão do trabalhador sob ameaça de castigo, a proibição de transporte obrigando ao isolamento geográfico, a vigilância armada para manter o trabalhador no local de trabalho e a retenção de documentos pessoais.
Retrocesso – O Brasil reconheceu formalmente a existência de escravidão no seu território, em 1995. Desde então, mais de 35 mil trabalhadores foram retirados dessas condições, recebendo seus direitos trabalhistas. O número de trabalhadores em condições análogas à escravidão resgatados no Brasil este ano despencou. Mas não há motivos para comemorar. A queda, segundo funcionários que atuam na área, se deve à escassez de fiscalização e não à redução do número de trabalhadores em condições análogas à escravidão no país.
Em 2016 foram resgatadas 885 pessoas. Até setembro deste ano foram apenas 167 libertados. Os números são do próprio Ministério do Trabalho. De acordo com a Lei Orçamentária Anual, 3,2 milhões de reais haviam sido previamente alocados para as ações de fiscalização em 2017. Mas devido ao contingenciamento apresentado pelo Governo de Michel Temer em função do ajuste fiscal, o valor foi reduzido para 1,6 milhão de reais. A maior parte, 1,4 milhão, já havia sido gasta até setembro, e o dinheiro restante já estaria comprometido. Em agosto, o MP chegou a ajuizar uma ação contra a União para garantir o financiamento das ações de combate ao trabalho escravo.
Outro lado – Ao contrário do que aconteceu quando suspendeu o decreto que revogava uma reserva mineral na Amazônia (a Renca), o presidente Michel Temer não dá sinais de que voltará atrás com relação ao trabalho escravo. O claro objetivo do governo é não criar atritos com a bancada ruralista no Congresso às vésperas da votação da segunda denúncia contra ele.
Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que a portaria “aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado Brasileiro”. Afirma, ainda, que ela esclarece os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo.
Escravidão contemporânea
O trabalho escravo hoje não é o mesmo das senzalas e do tráfico negreiro que vigorou por séculos. Mantém, no entanto, o atentado aos direitos humanos e à dignidade das pessoas. Em vez de senhores de engenho, os patrões são grandes latifundiários, cafetões e empresários bem sucedidos. A subprocuradora-geral da República e professora de direito penal na Universidade de Brasília, Ela Wiecko de Castilho, explica que o trabalho escravo começa com o tráfico de pessoas, muitas vezes vitimas desavisadas de um grande sistema que alimenta a mão de obra em condições degradantes.
“Sem condições de plantar no semiárido nordestino, o sertanejo é convencido a ir trabalhar em fazendas, muitas vezes na Amazônia. O chamado \’gato\’ providencia transporte até o local de trabalho, alimentação e moradia – se é que podemos chamar assim os repousos em que vivem. Chegando lá, após trabalhar de 12 a 15 horas por dia, o trabalhador vai receber e descobre a dívida que tem com o patrão é maior do que o salário prometido. Por fim, trabalham meses sem receber e a cada vez fazendo mais dívidas com o gato e o dono da fazenda”, conta a especialista. “Além da mão de obra no campo, também temos a exploração da prostituição infantil. Em alguns casos, os gatos oferecem drogas, viciam os trabalhadores e transformam a dívida em um poço sem fundo”, completa.
Apesar de o poder público saber da existência e da gravidade do problema, indefinições jurídicas levam à impunidade os patrões flagrados com funcionários trabalhando em condições análogas à escravidão. A pena estabelecida pelo Código Penal é de dois a oito anos, mas normalmente é substituída por medidas cautelares como o pagamento de cestas básicas. O Pará, sob forte influência de latifundiários, é o estado com maior número de casos comprovados de trabalho escravo, reunindo 60% dos casos do Brasil, segundo o MTE. Os principais fornecedores desta mão de obra são Maranhão, Bahia e Piauí – que também são usuários da escravidão.
BASTIDORES
Despreparo
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se impressionou com o despreparo do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e do procurador do Ministério com quem se reuniu na quarta-feira (18) para tratar da portaria do trabalho escravo. Durante o encontro, a PGR precisou explicar aos membros do Executivo conceitos de liberdade e como se dá a escravidão atualmente. Apesar do esforço didático, o ministro afirmou que o governo não pretende voltar atrás, mas que está disponível para receber sugestões para aprimorar a medida. Raquel Dodge, por sua vez, oficializou o pedido de revocação do decreto e chamou atenção para as violações constitucionais que podem ser efetivadas a partir do cumprimento da norma.