Ricardo Nogueira Viana (*)
Na semana seguinte ao traumático processo eleitoral, o Brasil voltou a sorrir com a consagração da ginasta Rebeca Andrade como a melhor do mundo. Após se destacar no último evento olímpico, no último dia 3 de novembro a brasileira sagrou-se campeã mundial individual de ginástica artística, na Inglaterra.
O País já vinha galgando espaço no cenário mundial da modalidade e teve, em 2021, em Tóquio, o seu melhor desempenho em ciclos olímpicos. Além da apresentação ímpar, Rebeca emprestou sua voz a milhões de brasileiros que enxergam no esporte um modo de sobrevivência, de combate às desigualdades e de ascensão social.
O Brasil se prepara para disputar os dois principais eventos esportivos do planeta – a Copa do Mundo e as Olimpíadas –, os quais deverão trazer ao brasileiro o sentimento de nação e a convivência pacífica entre os desiguais.
Das 22 medalhas assimiladas pelo País em Tóquio, duas estão no peito de Rebeca. Mulher, negra, de família humilde, a atleta apareceu para o mundo – após 3 cirurgias no joelho – ao conquistar medalhas no individual geral e no salto sobre o cavalo.
Agora, em 2022, Rebeca se tornou a atleta mais completa da ginástica, à frente da norte-americana Shilese Jones, e da britânica Jessica Gadirova. Os mais antigos que viram a romena Nádia Comaneci ganhar 7 notas 10 na Olimpíada de Montreal em 1976 tiveram a honra de ver uma brasileira sentar-se no mesmo trono.
Em Liverpool, Rebeca coroou sua performance ao som do funk Baile de Favela, trazendo regionalismo e sensualidade à sua apresentação. Após a conquista olímpica, a ginasta amadureceu não só os seus movimentos e resultados, mas também a sua consciência e seu sentido de pertencimento.
“Para mostrar do que o preto é capaz”, Rebeca falou não só de esforço físico, mas de preconceito. Estamos em um país com as maiores desigualdades no mundo, onde 33 milhões de pessoas passam fome.
Nação em que o racismo é estrutural e permeia todas as classes sociais. Em que 56% de sua população é composta por negros e que, grande parte, vive abaixo da linha da pobreza. Povo que, apesar de ser maioria, suporta baixos salários, pífias qualificações, desemprego e desídia do Estado. Afrodescendentes que certamente tiveram influência nos recentes resultados das urnas.
Nos últimos tempos, tem sido comum vermos atletas engajados nos âmbitos político e social. Além do esforço físico, os protagonistas emprestam suas imagens, ações e opiniões em prol da humanidade.
Cito, como exemplo, o jogador Sadio Mané. Ganhador do Prêmio Sócrates, pela France Football, o senegalês se destacou não só com a bola nos pés, mas também por iniciativas extracampo. Doou milhões de dólares para a construção de hospitais, combate à covid 19, fornecimento de internet grátis às famílias de sua terra natal, entre outros feitos assistenciais.
A voz de Rebeca ganhou eco através do desporto, que, em um país carente como o nosso, apresenta uma dupla face. Aos mais abastados do topo da pirâmide, esporte é sinônimo de qualidade de vida.
Já para os que clamam por comida, representa um modo de sobrevivência, uma chance de alçar maiores voos, de contar suas histórias, de ter estabilidade financeira, de influenciar os seus pares, ou, quem sabe, até de ganhar fama e dinheiro, o que poucos conseguem.
O título e a voz de Rebeca vieram justamente após o segundo turno das eleições e no mês da consciência negra. Sim, o negro é capaz. Capaz de suportar ter sido sujeito passivo da escravidão, de suportar os castigos severos, os estupros e de ainda viver em condições precárias. E representa a maior parte da população, que influenciou a situação política do país.
Saímos de um hemorrágico processo eleitoral em que a nação se dividiu ideologicamente. O Brasil entrará em 2023 sob novo comando. Se políticos divergiram e dividiram a nossa nação, cabe ao esporte, por meio de seus ícones, pregar a união.
A campeã Rebeca Andrade ocupou o seu lugar de fala. Com a chegada da Copa do Mundo e aproximação das Olímpiadas em 2024, quem sabe alcancemos a pacificação. O Catar chegou e a França que nos aguarde. Nossa Porta-Bandeira já foi escolhida.
Rebeca representa o Brasil negro, diverso, plural, que cresceu e amadureceu. Atleta que, além de pular, saltar e dançar ao som de Baile de Favela, sabe que seu corpo e sua voz já não se calam mais. Eles voam pelo ar, em busca da paz e da igualdade entre os brasileiros.
(*) Delegado Chefe da 6ª DP e Professor de Educação Física.