Instituto Federal de Brasília (IFB) – Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília
Adilson Cesar de Araújo (*)
Este texto visa contribuir com o debate sobre as consequências nefastas da implementação da Reforma do Ensino Médio no âmbito dos Institutos Federais de Educação (IFs) e afirmar o projeto de Ensino Médio Integrado (EMI) como uma experiência a ser defendida e aperfeiçoada como política pública.
Os impactos da Reforma do Ensino Médio no contexto dos IFs têm ocorrido de forma diversificada, o que está relacionado com a maneira pela qual cada um deles tem compreendido esse processo, ora aderindo, ora negociando com os pressupostos presentes nos textos da reforma, ora reagindo e não fazendo a adequação do currículo dos cursos aos fundamentos presentes na Reforma do Ensino Médio.
Em recente pesquisa que desenvolvi sobre os possíveis impactos da reforma no contexto dos projetos curriculares dos IFs, verifiquei que parte dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) do Ensino Médio Integrado já fez a adoção da carga horária máxima de 1.800 horas para a formação geral, adequando-se ao que estabelece a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Os dados coletados indicaram que há um processo incipiente e crescente de implementação da reforma em curso nos IFs. Neste sentido, algumas constatações puderam ser feitas nos currículos que adotaram a carga horária estabelecida pela BNCC:
1) a estrutura curricular da formação desses cursos não contemplou a oferta de todos os componentes curriculares de forma equilibrada, ao longo dos 3 anos do percurso formativo dos jovens no EM. Isto fragilizou a formação geral.
2) o Núcleo Integrador sinalizou para uma perspectiva de valorização das dimensões técnicas da formação, predominando um viés instrumental ou uma forma de acolhida dos componentes curriculares “sobrantes” da carga horária da formação geral.
3) a adoção da estrutura curricular da BNCC nos cursos integrados trouxe prejuízo para a oferta dos componentes ligados às áreas das Ciências Humanas e Sociais, com cargas horárias reduzidas a “migalhas” quando comparadas às cargas horárias dos componentes obrigatórios.
4) a distribuição de carga horária apresentou uma explícita superioridade das cargas dos componentes de Língua Portuguesa e Matemática sobre os demais. Tais componentes curriculares apresentam 4 vezes mais o número de horas do que os demais componentes da formação geral.
5) a adoção da BNCC revelou início de um processo de descaracterização do projeto de EMI, uma vez que compromete a formação humana integral, aligeira a formação dos componentes curriculares das Ciências Humanas e Sociais, que passaram a ter “migalhas” de carga horária.
A descaracterização do projeto do EMI
Cabe destacar que BNCC é o eixo estruturante da Reforma do Ensino Médio, o seu braço operacional, uma vez que é através dela que se flexibiliza o currículo, separando-o em dois blocos: formação geral e itinerários formativos. Dessa forma, a adoção da carga horária com o limite de 1.800 horas para a formação geral tem significado um claro indício de implementação da reforma no contexto do currículo dos IFs, mostra-se uma porta de entrada da reforma, com a consequente descaracterização do projeto do EMI e uma ameaça à continuidade desse projeto num futuro próximo.
Neste sentido, a adoção da carga horária da BNCC, nos currículos do Ensino Médio Integrado, indica não só o início da implementação da Reforma do Ensino Médio nos IFs, como também o anúncio da destruição dessa proposta, uma vez que a integração curricular e a indissociabilidade entre a formação geral e a formação técnica passam a ser incompatíveis com o engessamento posto pelo limite de uma carga horária de até 1.800 horas para a formação geral.
Assim, no lugar da integração curricular, prevalecerão a desintegração, a separação do currículo em dois blocos, se constituindo em um simulacro de currículo integrado, ou seja, um curso técnico concomitante travestido de EMI.
Por meio dessas constatações, algumas problematizações e contribuições para o debate sobre o futuro do projeto de EMI no contexto de avanços de reformas neoliberais na educação podem ser lançadas:
– O momento exige o resgate de ativos históricos duramente conquistados pelos movimentos sociais na década de 1980 e que estão presentes na Constituição de 1988, como o princípio da gestão democrática e a perspectiva da formação plena e cidadã, hoje ameaçados diante da imposição de políticas educacionais que negam a participação dos sujeitos sociais no seu processo de elaboração e que desconhecem a autonomia das instituições de ensino, buscando a instrumentalização do espaço escolar a partir de metas e objetivos não pactuados com a comunidade escolar.
– É necessário afirmar um projeto pedagógico que não trabalhe com a hierarquização do conhecimento, mas que busque isonomia e equilíbrio em sua distribuição e difusão, uma vez que não tem como falar de formação plena e cidadã com projetos de cursos que reservam quase a metade da carga horária da formação geral para apenas dois componentes curriculares obrigatórios, secundarizando os demais campos de saberes.
– É urgente a necessidade de se resgatar a dimensão política no debate educacional, como forma de confrontar o viés neotecnicista, utilitário, pragmático e de pseudoneutralidade imposto pela racionalidade neoliberal, o que tem gerado consequências devastadoras sobre o trabalho pedagógico, a organização curricular, a formação humana e para o projeto de educação e a identidade social dos IFs.
– É importante afirmar e revitalizar cada campus/escola como espaço educativo vivo, dinâmico e acolhedor para as juventudes e a comunidade local, como um campo de atuação da pluralidade de vozes, dos “subalternos”, da diversidade.
– É importante fazer de cada instituição de ensino um espaço de reflexão-formação-ação a serviço de um outro modo de vida, mais justo, democrático e inclusivo. Ou seja, um espaço que cultiva vidas, e não a cultura da morte. E contribuir, assim, para processos de democratização que vão do espaço escolar para a sociedade mais ampla.
– O momento exige o resgate da sociabilidade perdida em defesa do projeto de EMI com vistas à construção de um projeto de educação e de sociedade comprometidos com a formação humana integral, com a justiça social e com o combate às múltiplas formas de exploração e de expropriação do trabalho.
Portanto, é importante afirmar os mecanismos de participação ativa dos sujeitos sociais na definição dos projetos pedagógicos e das políticas educacionais.
– É necessário instituir a cultura de encontros regionais e nacionais (fóruns, seminários, congressos, conferências nacionais) como espaços de formação-reflexão- proposição das questões que envolvem a política educacional. Hoje, na EPT, esse espaço se reduz aos gestores da Rede Federal de Educação (REDITEC), mas não existe a cultura de encontros regionais e nacionais da comunidade escolar para debater e deliberar sobre as metas e objetivos das políticas educacionais da Educação Profissional e Tecnológica.
– É imprescindível afirmar a necessidade de uma atuação e articulação em rede na defesa do EMI e da autonomia dos IFs.
– É importante afirmar e revigorar cada campus/escola como espaço público democrático e acolhedor da pluralidade de vozes, por meio do exercício da arte da conversação, do respeito ao outro como ser humano. A democracia depende da existência de espaços públicos vigorosos. É neles que nos encontramos como iguais, debatemos e construímos coletivamente propostas para superação da realidade imposta. A democracia está fadada ao fracasso quando se perde o respeito pelo o outro e pelas instâncias que a alicerçam.
– É imprescindível que o projeto de EMI valorize a formação humana integral em suas múltiplas dimensões, pois a democracia depende e precisa da valorização das humanidades e das artes para a construção de sujeitos críticos, sensíveis, criativos, reflexivos e atuantes na esfera pública.
– É urgente que a gestão democrática não se reduza à garantia dos mecanismos formais da eleição para reitor e gestores de campus. Esses mecanismos, apesar de imprescindíveis, são insuficientes para a construção de uma cultura democrática no interior dos IFs. Assim, é necessário aprofundar a cultura democrática, por meio da criação e consolidação de canais de participação para que a comunidade escolar possa interferir na definição das políticas educacionais. A gestão democrática será uma política limitada e incompleta na Rede Federal de Educação enquanto não atingir os poderes centrais.
– É necessário dar visibilidade às questões culturais, transformando cada campus/escola num polo irradiador de cultura e de produção de conhecimento como contraponto à lógica imposta pela BNCC, que é de hipertrofia prescritiva de conteúdos e de desenvolvimento de competências numa perspectiva de educação utilitária, individualista, pragmática e a serviço do capital, o que nega da formação humana as dimensões culturais e sociais.
– Não se pode limitar o projeto pedagógico dos IFs a querer dar respostas de caráter pragmático, com tendência marcadamente operacional, de forte conotação eficientista para atender apenas à dinâmica econômica e produtivista.
– O projeto do EMI deve estar alicerçado em valores que venham colaborar para romper com as múltiplas formas de opressão e de exploração produzidas pelo sistema capitalista. Assim, “não se pode reduzir o que conhecer a como conhecer, o conteúdo aos métodos e os princípios aos resultados. O processo educacional é mais amplo e abrangente” (MENDEZ, 2011, p.235).
Deve-se dar destaque, por meio de pesquisas sobre a implementação da Reforma do Ensino Médio, às consequências nefastas desse processo para o trabalho docente, para a formação dos jovens e para a gestão democrática da educação, como forma de desconstruir a narrativa oficial e de mostrar a verdadeira essência destrutiva da reforma para a comunidade escolar.
– Devemos lutar pela revogação da Reforma do Ensino Médio e disputar o conceito de qualidade da educação, trabalhando com a perspectiva de uma verdadeira transformação na estrutura da educação básica, de forma articulada, orgânica e democrática, dentro de um contexto de institucionalização do Sistema Nacional de Educação pactuado socialmente.
Enfim, inúmeros são os desafios apresentados num contexto de ameaças à democracia, à formação cultural sólida dos jovens e que anuncia um processo de mercantilização e de privatização da educação. A política educacional hegemônica tem que ser combatida a partir de projetos alternativos concretos e viáveis.
Hoje, o projeto de EMI dos IFs ainda é um contraponto ao que está posto como proposta pela Reforma do Ensino Médio, desde que não seja descaracterizado. A defesa e busca de aperfeiçoamento do EMI é tarefa de todos os setores comprometidos com a democratização da educação e com a defesa de um projeto que possibilita o desenvolvimento humano, a socialização, a apropriação da cultura e o domínio dos conhecimentos científicos, culturais e tecnológicos para a inserção ativa das juventudes na democracia e no mundo do trabalho.
(*) Pesquisador do Observatório Nacional do Ensino Médio e ex-Pró-Reitor IFB de Brasília