Um dia, sem aviso, você recebe um telefonema. Coisa grave nestes tempos em que ninguém ousa ligar sem antes mandar uma mensagem solicitando autorização. Só pode ser algo grave. E era. A morte chegou para ele. Mas ele já havia partido há muito tempo.
Será que ninguém havia percebido que o corpo estava perambulando solitário, sem alma, sem vontade, sem nada. Restavam apenas sinais que indicavam a proximidade da partida.
As pessoas choravam. Eu não. Não entendiam.
Eu chorei antes. Chorei quando ele caiu e quebrou a perna, quando começou a hemodiálise. Chorei quando ele perdeu a esposa. Os dias estavam nublados, fragmentados. E ele se foi.
Eu realmente não entendo. Nós morremos tantas e tantas vezes. Ensaiamos com empenho a nossa partida e não nos esmeramos naquilo que realmente importa.
Lutamos contra a finitude de uma maneira ou de outra. Mas, aceitamos com tanta subserviência as pequenas mortes. Entre a resignação e a desistência, a escolha. Quantas pequenas mortes até o fechar das cortinas?
É isso: lutamos contra o fim e não pelo meio. Viver é secundário, paralelo, coadjuvante. A razão maior é sempre evitar o sofrimento, não importando quanto sofrimento isto lhe cause.
Não importa o quanto você se cuide ou se abandone, você vai partir. Eu prefiro partir somente no momento final, mas a maioria se parte antes de partir. A gente vai se partindo aos poucos, rachaduras, fissuras, rasgos.
O problema só existe mesmo quando uma estrutura interna é atingida e nem sequer percebemos. Aí é mal de raiz. Melhor ir.
Na vida, a gente vai se rabiscando com marcas que nos lembram que estamos vivos e presentes. Aprendi cedo que as cicatrizes são boas. Elas contam a sua história e avalizam que você foi forte o suficiente para seguir adiante. Tenho uma queda pelas minhas cicatrizes; as sinto como minha grife pessoal.
Pegar a mala e partir é fácil. Difícil não é morrer, difícil é ficar. Derrubar muros é fácil. Difícil é edificar-se em meio a escombros.
Morrer é quebrar-se. Viver é tecer.