Marco Antônio Spinelli (*)
No documentário Jane, da National Geographic, sobre a extraordinária cientista e conservacionista Jane Goodall, vemos uma doce senhora, chegando aos 90 anos dizendo que sente que tem uma mensagem para passar e que foi colocada nesse planeta para fazê-lo. “Eu tenho que fazer isso”. Apesar da idade avançada, seu senso de propósito continua movendo sua vida, suas falas, seu trabalho.
Fico pensando nessas raras pessoas que têm esse senso de chamado, de convocação da vida para seguir sua missão e não olhar para trás. Esse senso é inerente à nossa experiência humana? Não sei se a resposta cabe ao cientista ou ao psicoterapeuta presentes no autor destas mal tecladas linhas, mas vou dedicar este texto a essa reflexão.
Jane descreve, numa entrevista para o canal The Well, do YouTube, uma experiência fundamental na sua infância: quando tinha quatro anos, sua mãe a levou para uma fazenda e ela viu um ovo, ao visitar o galinheiro. Perguntou para a sua mãe como a galinha colocava o ovo. A mãe desconversou.
A menina Jane já tinha em si a semente da Drª Jane Goodall. Não gostou da resposta e resolveu investigar as galinhas por conta própria. Seguiu uma galinha marrom até o poleiro, e lá ficou por horas. Quando as pessoas já a procuravam, a menina reaparece cheia de penas e conta para a mãe a aventura. E descreve detalhadamente tudo o que viu, no maravilhoso processo de colocação do ovo que a galinha realizara.
Aqui, destaco um ponto essencial da história: sua mãe, no final dos anos 1930, poderia ter dado uma bronca na menina e mandado parar com aquela bobagem de sumir para observar galinhas. Seria uma reação cabível hoje, com pais super vigilantes e apavorados. Mas não foi assim. A mãe ouviu a descrição, com uma ponta de orgulho.
Nesse episódio, ela vivenciou, pela primeira vez, o Método Científico: você tem uma pergunta, a resposta não é correta, estuda o fenômeno, descreve o que acontece, vê o resultado e descreve como aquilo ocorre. Jane Goodall é uma primatologista, pioneira na área, e na década de 1960 passou muitos anos nas florestas da Tanzânia estudando chimpanzés e suas relações sociais e afetivas.
Ela descreve o período como a época mais feliz de sua vida. Hoje, se dedica a uma fundação para promover a preservação das florestas onde vivem seus amados chimpanzés e esse maravilhoso ecossistema.
Mas não é disso que vamos tratar. Vamos falar sobre o Daimon. Daimon não é demônio. É, na Mitologia Grega, o espírito que deseja, que revela o caminho do Herói. Daimon é o Gênio, não o da lâmpada, mas aquele que sussurra para que lado devemos seguir para desenvolver nosso potencial.
Se a nossa vida é uma semente que pode, ou não, florescer, então o Daimon é aquela força invisível que transforma uma pequena semente numa árvore. É uma força do que o psiquiatra Carl Jung chamou de Individuação.
Jane Goodall disse para sua mãe, aos dez anos de idade: “Quando crescer vou para a África”. Em vez de responder “deixa de bobagem e vá se preparar para arrumar um marido”, a mãe respondeu: “Se você quer isso, vai ter que estudar, agarrar as oportunidades e, eventualmente, conseguirá realizar seu sonho.
Um manual completo para trazer à realidade o sonho do Daimon, o sussurro do Gênio. Isso pode parecer um daqueles textos chatos e motivacionais, de “siga o seu sonho”. Não é a intenção. Mas acho que a mãe de Jane Goodall um manual de como ouvir, direcionar e dar suporte para o Gênio sussurrando no ouvido de sua filha.
Sem dúvida, foi obra do Gênio invisível e do mistério da vida colocar na mesma família essas mulheres extraordinárias e muito adiante de seu tempo.
(*) Psiquiatria e psicoterapeuta