Universalizar o acesso à assistência em saúde é um princípio constituinte do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. Avançamos mais nesse sentido do que países mais ricos e desenvolvidos, como os Estados Unidos, mas ficamos para trás se nos compararmos ao Canadá ou ao Reino Unido. Cada um desses sistemas com características próprias e com uma forma diferente de lidar com a polaridade entre o interesse público e o privado na saúde pública. A coexistência e até complementaridade entre público e privado é legítima e desejável, a promiscuidade entre eles, não.
O sistema de saúde pública brasileiro está caminhando sob um limite muito tênue – vemos um avanço de grandes grupos econômicos que atuam no segmento da saúde, inclusive de capital estrangeiro, ocupando espaço nas esferas de decisões políticas dentro das estruturas de governo tanto no que se refere à saúde privada e suplementar quanto na esfera pública.
O Médicos pelo Brasil, por exemplo, investe na terceirização em vez de criar uma carreira pública para dotar as localidades desassistidas de profissionais da medicina – vamos colocar uma ênfase aqui no fato de que médico sozinho e sem recursos não vai resolver o problema de saúde dessas populações, que precisam do suporte do Estado em todas as áreas.O programa recém-lançado pelo Ministério da Saúde vai ser gerido pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), inspirada num modelo de terceirização do serviço público adotado aqui no Distrito Federal: o Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (Iges-DF), um serviço social autônomo, pessoa jurídica de direito privado que pode contatar serviços de outros – pessoas físicas e jurídicas – para a execução dos serviços de saúde.
O Iges-DF foi criado porque o movimento sindical, o Ministério Público e outras instituições da sociedade civil fizerem oposição ferrenha aos planos que governos anteriores ao atual tinham de entregar a gestão das unidades públicas de saúde a Organizações Sociais de Saúde.
Organizações Sociais de Saúde são, em tese, organizações do terceiro setor, mas na maioria controladas por representantes dos grandes grupos econômicos que atuam na saúde. Não visam lucro pelo trabalho da gestão, mas controlam os contratos e podem direcionar o fluxo do dinheiro que lhes é entregue pelo Estado para quem bem entenderem, sem controle do Ministério Público ou dos Tribunais de Contas.
Vamos tomar como exemplo uma das muitas unidades de saúde geridas por OS que existem no país: a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Viamão, no Rio Grande do Sul, sobre a qual a imprensa gaúcha publicou matéria falando da falta de médicos no início deste mês (não acontece só aqui e nem só no serviço público direto!). Ela é administrada pela OS Instituto dos Lagos, do Rio de Janeiro – uma terceirização –, que contrata empresas privadas – uma quarteirização –, as quais subcontratam médicos obrigados a ter registro de pessoa jurídica e não têm contrato de trabalho (o quinto elemento).
Do início do processo até o fim, foi eliminada a relação formal de trabalho, criou-se uma brecha de fiscalização e muito dinheiro público passou por muitas mãos, sem que o atendimento da UPA Viamão à população seja satisfatório. Com certeza, o gasto público também não diminuiu com tanto atravessador no processo.
A orientação para as políticas públicas no setor está partindo da definição de quem vai ficar com o dinheiro que os cofres públicos destinam à saúde e não da definição de qual é a necessidade de saúde da população. Enquanto isso, nós ficamos feito bonecos de porta de oficina, agitados pelos ventos de argumentações supostamente ideológicas, que escondem o foco real da questão: o dinheiro.