Leandro Grass (*) e Rafael Parente (*)
Recentemente, diversas democracias, entre elas o Brasil, vêm testemunhando a ascensão de figuras que se apresentam como símbolos “anti-sistema,” prometendo reformar um Estado supostamente ineficiente, corrupto e incapaz de oferecer soluções para os problemas da população. Alguns se assumem “outsiders” – não dizem ser políticos, mas gestores, empreendedores e outras denominações – outros carregam de décadas de mandatos ou são herdeiros de oligarquias que assumem uma seletiva indignação com as mazelas do poder do qual eles mesmos usufruem. O fato é que alguns desses personagens seguem mobilizando uma parcela considerável da população e alimentando o sentimento anti-político.
Uma das artimanhas dos caricatos anti-sistêmicos é apelar para uma moral que nem eles nem muitos dos seus adpetos praticam. São os mesmos que, em seu dia a dia, perpetuam atitudes que minam justamente o aperfeiçoamento do sistema que eles tanto criticam. Ao mesmo tempo que embarcam e reproduzem a defesa da meritocracia, da força individual e de uma liberdade sem limites, essas pessoas mantêm uma cultura que tolera e até celebra pequenas corrupções, seja na tentativa de sonegar impostos, na busca incessante por vantagens pessoais ou na flexibilização das regras que deveriam servir para o bem coletivo.
Essa realidade revela uma das contradições mais profundas da sociedade brasileira. Muitos querem um Estado que funcione, que seja eficiente e transparente. Porém, não estão dispostos a abrir mão dos privilégios que consideram “normais” ou até “necessários” para sobreviver em um país como o nosso. O argumento frequentemente utilizado é que, se muitos dos poderosos são ineficientes e corruptos, o cidadão também tem o direito de não seguir as regras. Afinal, “todo mundo faz isso.”
Sonegar impostos, furar fila, burlar regras, tudo isso, apesar de parecer inofensivo, perpetua um ciclo de desconfiança e descrédito que impede o Brasil de alcançar o lugar que tanto desejamos. Como dizia Paulo Freire, “precisamos de uma educação que nos emancipe e nos leve a pensar e agir de forma crítica, ou tudo o que faremos será reproduzir um comportamento opressor.” Sem refletirmos sobre nossas atitudes e questionarmos as estruturas perversas, acabamos reforçando as aquilo que queremos combater.
E é justamente no terreno da hipocrisia que figuras despreparadas politicamente, mas capazes para lidar com os algoritmos e construir técnicas de engajamento digital, são eleitas e firmam raízes no sistema que tanto criticam. E na lógica do “quanto pior melhor” quem sai perdendo é a maioria do povo, que trabalhará para sustentar lacradores incompetentes que não sabem nem por onde começa uma política pública. Idiotas que vão destruir legados e conquistas históricas da população, gerando prejuízos que demorarão anos para recuperarmos.
Essa lógica é incompatível com o projeto de um Brasil mais justo e sintonizado com as necessidades da sua população. Sua realização depende de um profundo respeito às instituições, às regras e à igualdade de oportunidades. Desqualificar a política dando voz à “anti-política” faz com que qualquer tentativa de aperfeiçoar o sistema esteja fadada ao fracasso. Não se pode exigir do Estado um comportamento que não praticamos como cidadãos e damos voz a estelionatários que construíram suas trajetórias enganando as pessoas.
Confiar em um candidato que promete romper com o sistema é ilusório e contraditório, especialmente quando no dia-a-dia nossas ações seguem reforçando o que há de pior nesse mesmo sistema. Se realmente queremos um país melhor, devemos começar abandonando práticas opressoras e cultivando uma postura mais justa e humana. Mudar ou aperfeiçoar o sistema só faz sentido quando também nos tornamos agentes da transformação, e isso inclui abrir mão de práticas que comprometem o bem-estar da coletividade.
Por fim, vale o alerta de que não há mudança social fora da política. Negá-la, rejeitá-la ou banaliza-la só serve aos maus políticos. Sejam eles assumidos ou escondidos em personagens bravateiros.
- Leandro Grass é sociólogo, professor, mestre e gestor cultural e atual presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
- Rafael Parente é professor, PhD em educação pela Universidade de Nova York (NYU), foi secretário de Educação do DF e subsecretário de Educação no município do Rio de Janeiro