Ricardo Nogueira Viana (*)
O mundo assistiu ao fim da 23ª Olimpíada da era moderna. Durante 20 dias, na França, atletas de 206 comitês olímpicos se compararam diante do mundo. Alguns se mantiveram no rol da fama, outros se revelaram e vários esportistas ficaram no anonimato, pois não alçaram medalha. Esse é o esporte de resultado, de rendimento ou de alta performance.
O Brasil chegou ao maior evento desportivo do mundo com uma delegação de 277 atletas. Destes, 55% eram mulheres. Na classificação geral, com 20 medalhas, restou-nos o vigésimo lugar.
Em Tóquio 2021, o Brasil assimilou 21 medalhas, 12º lugar, o melhor desempenho do País, que foi marcante não só pela performance brasileira, mas por ser consequência e coroar o investimento fomentado nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
No quantitativo de medalhas, é o ouro que alavanca a colocação dos países e, em Paris, o Brasil alcançou apenas três medalhas do metal precioso.
Diante do rendimento aquém, urge mencionar o desempenho de dois esportes em que o talento brasileiro vem surpreendendo o mundo: o judô e a ginástica artística. No primeiro, de origem oriental, o Brasil conquistou a sua primeira medalha nos jogos de Munique, em 1972.
De lá para cá, muita poeira se levantou nos tatames brasileiros. Oscilou-se em alguns momentos, mas, desta vez, a arte do caminho suave brasileira atingiu o seu auge ao conseguir medalhas de bronze, prata e ouro no individual e selar a participação com o terceiro lugar por equipes. Estivemos atrás apenas da França de Teddy Riner, que venceu na final a até então imbatível esquadra japonesa: Ippon para os franceses, choro japonês e regozijo brasileiro.
Não foi diferente na Ginástica Artística: o Brasil saiu com o terceiro lugar por equipes e com duas medalhas de prata, no individual geral e no salto, e ouro no solo, prova que é considerada o ápice da modalidade.
O outro ouro veio no voleibol. Após 28 anos da última conquista feminina, Ana Patrícia e Duda subiram no primeiro degrau do pódio.
Nessa edição dos jogos, para o impávido e colosso: judô, ginástica, vôlei, Brasil, mulher preta e vitória passaram a ser palavras correlatas. Na arte marcial, o único ouro foi conquistado pela carismática Beatriz Souza. “Mãe, consegui, foi pela vó”. Essas foram as primeiras palavras que a campeã olímpica conseguiu bradar na sua entrevista após a luta final.
Rebeca e sua turma também entraram para a história. Uma modalidade esportiva que até há pouco tempo era incipiente no Brasil, galgou degraus e viu a nossa principal ginasta triunfar com quatro medalhas, tornando-se a maior medalhista olímpica do Brasil.
Ana Patrícia sacou, bloqueou, apontou o dedo e chorou juntamente com sua parceira nas areias de Paris.
Todas as citadas são mulheres, medalhistas olímpicas, negras, e as três medalhas douradas brasileiras foram conquistadas por elas. Na olimpíada anterior, Rebeca Andrade, após receber a medalha de ouro no salto, declarou: “É pra mostrar do que o preto é capaz”.
Não se pode ter dúvida da força de uma mulher negra. Estas que hoje nos orgulham são descendentes da escravidão; advindas de uma ancestralidade obscura que tiveram mulheres que sobreviveram aos tumbeiros; que serviram aos desejos de seus senhores; que compulsoriamente foram amas de leite; que após 136 anos do pós-escravidão ainda ocupam a base da nossa pirâmide social e estão em maior vulnerabilidade socioeconômica em nossa sociedade; que possuem menor grau de escolaridade acarretando uma pior inserção no mercado de trabalho; que são as maiores vítimas de feminicídio.
É tempo de olhar o passado, avaliar o presente para edificar um futuro disruptivo. Essas mulheres de ouro nos abrilhantaram, mas há de se rememorar quem já passou e abriu caminhos para que elas triunfassem.
Cito a hoje comentarista esportiva Daiane dos Santos, outra mulher negra que sofreu com o preconceito, que foi massacrada quando, apesar de ser campeã mundial, não conseguiu o triunfo olímpico.
Ao comentar o feito de Rebeca diante de Simone Biles, com propriedade, Daiane passou a citar a importância da mulher negra para o Brasil e para o esporte mundial. Aditou que Rebeca representa os 56% da população brasileira, que é negra; mulheres negras que só parecem pertencer à nossa sociedade quando estão ganhando.
O Brasil é uma país machista, misógino e racista. Quando se fala sobre preconceito em relação às mulheres, abrimos um parêntese para falar da mulher negra.
Rebeca, Beatriz, Ana Cristina: o ouro do Brasil é de preta.
(*) Delegado-Chefe da 35ª DP e professor de Educação Física